Arquidiocese de Braga -

4 janeiro 2022

Dia Mundial do Braille: “O que a minha visão não alcança, os meus outros sentidos conseguem”

Fotografia DR

DACS com Vatican News

No Dia Mundial do Braille, a Ir. Veronica partilha a sua história como irmã religiosa com deficiência visual do Quénia, e descreve como cada desafio deve ser aceite como uma porção da cruz de Cristo para servir aos outros.

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Enquanto o Dia Mundial do Braille (4 de Janeiro) nos lembra da importância da acessibilidade e independência para as pessoas cegas ou com deficiência visual, a Ir. Veronica partilha a sua história como uma irmã religiosa do Quénia que começou com deficiência visual no início da adolescência.

“Tudo depende da forma como a pessoa se aceita. Deus nunca faz nada para causar mal a ninguém. Costumava perguntar-me: porque não consigo ver quando os meus irmãos e irmãs podem? A forma como me aceito e a forma como me apresento é como os outros me aceitarão ou rejeitarão”, afirma.

 

D. Orione

A Irmã Veronica mora no Quénia, numa comunidade com três outras irmãs com deficiência visual, que fazem parte de uma congregação ainda maior: as Irmãs Sacramentinas de D. Orione.

Conversando com o Vatican News a partir da sua casa no Quénia, explica que as irmãs na congregação são contemplativas e activas.

“Este era o desejo de D. Orione: permitir a quem precisava, poder servir a Deus através da adoração. O que quer que alguém tenha a oferecer à congregação, podem fazê-lo aqui”, diz.

Das sete irmãs da sua comunidade, as quatro que têm deficiência visual são apenas “parcialmente contemplativas”, já que participam nas actividades da casa, encontram-se com pessoas e dão palestras.

Elas são um conforto umas para as outras, explica a Ir. Veronica, mas diz que não entrou para a congregação “por precisar de ajuda”.

“Preciso de oportunidade, não de simpatia”, explica. “Frequentemente, as pessoas presumem que deveriam estar «a fazer coisas por mim». Isso não me ajuda! Mostrem-me como pescar o peixe, mas não o façam por mim”, diz a Irmã.

E é isso que as irmãs da sua comunidade fazem.

 

A história da Irmã Veronica

Veronica nasceu com visão total. Aos 13 anos, contraiu malária e recebeu um medicamento chamado Quinino para tratá-la.

“Os hospitais não eram nada como são agora”, diz, e a medicação, que mais tarde foi proibida em 2007, danificou o seu nervo óptico e fez com que perdesse a visão.

“Reconheço luz e sombra, no entanto”, especifica, acrescentando que a tecnologia é uma ajuda maravilhosa. Explica que dita as suas mensagens do WhatsApp para o telemóvel, e que o dispositivo lê as mensagens recebidas de volta.

Aos 13 anos, “é a idade que nos começamos a desenvolver... menstruamos e é quando as coisas começam a mudar, e nessa altura eu perdi a visão”, diz. “Mas quando algo assim acontece enquanto somos crianças, é mais fácil de suportar e aceitar”.

Acrescenta que algumas pessoas perdem a visão quando já assentaram na vida e que correm o risco de desperdiçar as suas vidas. “Tudo depende da fé de cada pessoa”, diz Veronica.

 

Fé e deficiência

“Nasci numa família católica”. No início, o pai de Veronica, pescador, tinha dificuldade em aceitar a doença e costumava perguntar “poequê eu?”, “porquê a minha filha?”. Ele nunca fez mal a ninguém, explica ela.

A sua mãe, que trabalhava ajudando em lares familiares e congregações, foi mais receptiva no início.

“Nunca pararam de ir à igreja, ou de rezar” e o seu pai passou a aceitar também, porque “eles sabiam que tudo o que acontece tem um propósito”. E quando isto acontece, acrescenta Veronica, e há uma família a ajudar e a sustentar “torna-se muito mais fácil”.

Mas, apesar da ajuda de uma família que a ama, ser cego exige coragem. Agora com 63 anos, a Irmã Veronica diz que foi a coragem que lhe permitiu transformar o que a princípio parecia uma fraqueza numa força e uma virtude.

“Não podes depender dos teus pais para sempre”, diz.

Tudo depende da pessoa com deficiência, sublinha. “A maneira como me apresento é a maneira como me vão aceitar”.

 

Braille, aprender e ensinar

Na altura, a escola para cegos era gratuita no Quénia.

“Aprendi Braille quando tinha 13 anos, no mesmo ano em que contraí a doença que me causou a deficiência visual”.

A Ir. Veronica foi para uma escola para cegos onde, durante sete anos, estudou o mesmo currículo que todos os outros alunos do Quénia estudaram.

“Embora eu tenha estudado em Braille, o exame é o mesmo para todos”, adianta. Os alunos tiveram que escrever as suas respostas através de um teclado, assim como todos os outros.

Entre terminar a escola e tornar-se freira aos 23 anos, a Ir. Veronica sentiu o chamamento para ensinar inglês e Swahili, a língua nacional do Quénia, a crianças com deficiência visual.

“E às vezes até matemática”, acrescenta, com o riso de quem talvez não seja muito boa na disciplina.

 

Um desafio como outro

A Irmã Veronica nunca perde o tom alegre da sua voz, falando com força e determinação.

“Não tenho vergonha de falar de mim! Isto faz parte da vida! Esta situação é normal. Os desafios estão por toda parte... devemos aprender a lidar com os desafios, e não permitir que eles lidem connosco. Quando Deus diminui um sentido, os outros aumentam. Onde a minha visão não chega, posso usar a minha imaginação e sensibilidade... e bom senso. Depende do dom de cada um”, afirma.

É por isso que, diz, “não há diferença entre mim e ti”.

 

Viajar

A Ir. Veronica também adora viajar.

“Tenho problemas para atravessar a rua”, admite, mas com ajuda para apanhar o autocarro certo e mudar para o próximo correto, pode “ir a qualquer lugar”.

Costumava viajar para uma província diferente, durante a noite, para ir à escola, e fazia isso sozinha.

“Sejam confiantes. Nem tanto ao ponto de dizer que conseguem fazer tudo e que não precisam de ajuda. Mas, antes de pedir ajuda, experimentem. Se outros conseguem, vocês podem pelo menos tentar”, sugere.

 

Carregar a Cruz

A Irmã nunca “viu” os seus dois irmãos e a sua irmã. Nasceram depois de ter perdido a maior parte da visão.

A princípio, a religiosa diz que se perguntou por que é que eles podiam ver e ela não. Mais tarde, porém, começou a entender que deveria apreciar que “cada uma das pessoas com deficiência visual tem um pedaço da Cruz de Deus”.

Com isso em mente, “é melhor apreciá-lo e viver feliz”.

Cada dia é um presente, conclui, afirmando que conseguiu a sua “independência”.

Artigo de Francesca Merlo, publicado no Vatican News a 4 de Janeiro de 2022.