Arquidiocese de Braga -

26 abril 2022

A natureza paradoxal das bênçãos de Deus

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DACS com La Croix International

Dizer “obrigado” mesmo pelas “más surpresas” que a vida às vezes nos entrega é um dos desafios imediatos que uma vida de fé cristã nos apresenta.

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A Eucaristia – diária ou semanal – é a nossa grande oração de acção de graças. E agradecer a Deus e a outras pessoas é talvez a mais frequente das nossas orações de cada dia.

Porquê? Porque se atingimos qualquer nível de maturidade, apreciamos muito bem o quanto nós, as nossas oportunidades e as nossas conquistas são, na verdade, dependentes de outros em cuja dívida estamos. Dizer “obrigado” é a resposta mais natural nas circunstâncias.

Quando eu tinha 20 e poucos anos e era estudante de licenciatura na universidade, tomei o meu lugar como membro da comunidade jesuíta em que estava para concluir as várias tarefas domésticas que precisávamos de concluir para tornar a nossa vida comum sustentável. Os deveres da cozinha e a limpeza doméstica dos espaços comuns não eram dignos de nota.

Mas uma das tarefas que partilhávamos era cuidar dos idosos e doentes na nossa comunidade num conjunto de responsabilidades de enfermagem que eram tão práticas quanto misteriosas – cuidar do bem-estar, da nutrição e das funções corporais dos idosos e enfermos.

E, claro, o cuidado físico era apenas a extensão material da convicção que partilhamos com Frank – que estava no misterioso abraço do amor de Deus mesmo na sua enfermidade. Durante alguns anos, partilhei o trabalho de cuidar de um jesuíta mais velho – Frank O'Brien – que sofria os efeitos da Esclerose Múltipla (EM) há quarenta anos.

Quando entrei na órbita daqueles que cuidavam dele, Frank precisava de ajuda na maioria das suas acções diárias, desde sair da cama pela manhã, ir à casa de banho, tomar banho e comer durante um longo dia até se preparar para dormir todas as noites. Havia sido diagnosticado com esclerose múltipla pelo menos 30 anos antes de eu entrar na sua órbita e de ser um dos seus cuidadores.

 

Dizer “obrigado” é em si mesmo um momento cheio de graça

E ao longo do dia, tudo, desde comer até ler o jornal ou ver televisão, precisava de assistência porque a Esclerose deixou as suas mãos tão instáveis ​​que ele não conseguia fazer coisas básicas por si mesmo, como ler, apertar botões ou levar comida à boca.

E o que mais me impressionou em tudo isto foi que as palavras que ele pronunciava repetidamente todos os dias eram “obrigado”.

A sua dignidade graciosa elevou o que poderia passar por uma série de procedimentos bastante mecânicos às solicitações genuinamente misteriosas que eram.

Dizer “obrigado” e saber que é tudo o que pode ou precisa de fazer é um momento cheio de graça. Significa, como aconteceu com Frank O'Brien, que aceita a sua carência e a sua dependência dos outros para atender às suas necessidades mais básicas como um presente. Isso é humilde e edificante ao mesmo tempo.

Mas o lado escuro desse momento cheio de graça é o oposto: frustração aguda e debilitante, um sentimento de desamparo que leva à raiva de mim mesmo pela minha incapacidade de alterar as minhas circunstâncias, uma abordagem agressiva a mim mesmo que me leva a culpar-me pelo infortúnio que me beija. Para mim, é apenas um pequeno passo para a depressão na minha condição.

 

A característica principal da mensagem de Jesus

Qual é a maneira de lidar com estas experiências como meios de crescer em amor, paz e até alegria? Acho que Frank O'Brien tinha a resposta para estas perguntas. Mas levei algum tempo para entender o que ele fez da sua experiência.

Naquela idade, eu estava inclinado a ver a sua aflição com a EM como uma má sorte extrema e algo com que Frank tinha de lidar. Depois de experimentar a minha própria parte de reveses, vim a ver o que Frank parecia ver na sua condição: que este era outro presente que havia surgido no seu caminho e, por mais difícil que fosse o desafio, cabia-lhe dizer “obrigado” a Deus e aos outros por isso.

Agradecer mesmo pelas “más surpresas” que a vida às vezes nos entrega é um dos desafios imediatos que uma vida de fé cristã nos apresenta. Aceitar a má sorte com a qual estamos a lidar vai directamente ao ponto principal da mensagem de Jesus. É a natureza paradoxal das bênçãos de Deus.

É ofensivo à nossa presunção comum de “recompensa e punição” sobre o trato de Deus connosco – recompensar-nos pelas nossas boas acções e punir-nos pelas nossas más acções.

Mas quem disse que é assim que Deus lida connosco? Não acabamos de terminar as nossas celebrações de Páscoa, onde o que aconteceu com Jesus exemplifica exactamente o oposto de tal presunção?

Frank O'Brien ensinou-me muito mais do a universidade nos anos que passei com ele naquela época de vida. E se pudesse – ele já morreu –, eu diria “Obrigado Frank”.

 

Artigo do Pe. Michael Kelly SJ, publicado no La Croix International a 23 de Abril de 2022.