Arquidiocese de Braga -

30 maio 2022

Padre espanhol: A “Amoris Laetitia” permite à Igreja “desatar os nós” na moral Católica desde a “Humanae Vitae”

Fotografia Arnaldo Casali / John Paul II Pontifical Institute

DACS com America

O padre Martinez é professor de teologia moral na Universidade Pontifícia Comillas, em Madrid – onde foi reitor de 2012 a 2021 – e professor visitante sobre o mesmo assunto na Universidade Gregoriana

\n

A “Amoris Laetitia”, a exortação apostólica publicada pelo Papa Francisco em Março de 2016 após os dois sínodos dos bispos sobre a família, não apenas alterou radicalmente a abordagem pastoral concreta da Igreja em relação ao casamento e à família, mas também abriu novos caminhos para fazer teologia moral no século XXI, disse à America numa entrevista exclusiva Julio Martinez, S.J., um padre espanhol e teólogo moral. Quanto mais plenamente este texto pós-sinodal for recebido pelos pastores, disse o padre Martinez, maior será o impacto que terá na Igreja Católica em todo o mundo.

“A recepção de um documento do magistério geralmente não é tão fácil, mas no caso da «Amoris Laetitia«, podemos dizer que é ainda mais difícil do que outros tipos de documentos por causa dos assuntos delicados de que trata”, disse o padre Martinez no seu discurso principal na “Teologia Moral e Amoris Laetitia”, uma conferência internacional de quatro dias realizada na Pontifícia Universidade Gregoriana, em Roma, de 11 a 14 de Maio. “Essa é uma das razões da conferência”.

O padre Martinez é professor de teologia moral na Universidade Pontifícia Comillas, em Madrid – onde foi reitor de 2012 a 2021 – e professor visitante sobre o mesmo assunto na Universidade Gregoriana. É graduado pela Weston School of Theology, uma instituição que se fundiu com o Institute of Religious Education and Pastoral Ministry do Boston College em 2004 para formar o que é hoje a Boston College School of Theology and Ministry.

No seu discurso, o Pe. Martinez exortou os envolvidos na teologia moral a “partir do mistério da encarnação; do Deus que se fez carne humana em Jesus Cristo”, disse. “E colocar as nossas melhores energias num pensamento teológico corajoso, humano e kenótico [ de auto-esvaziamento], que esteja em contacto com a realidade e aberto ao risco do encontro com outras racionalidades, culturas e disciplinas”.

No entanto, reconhece que “é mais confortável e aparentemente mais seguro repetir os caminhos herdados do passado, ignorando as questões, contradições e buscas do presente”, afirmou. “De que serve tudo isto se não formos capazes de transmitir luz e esperança aos problemas e sofrimentos que abalam os homens e as mulheres dos nossos dias?”.

 

A mudança radical na teologia moral após “Amoris Laetitia”

“A «Amoris Laetitia» exige uma mudança na epistemologia e na maneira de elaborar o conhecimento moral, e aqui surge a questão do discernimento”, disse o padre Martinez. “Discernimento é uma palavra muito importante na tradição inaciana.”

O padre Martinez observou que o Papa Francisco ao publicar a “Amoris Laetitia” trouxe este princípio central da espiritualidade de Santo Inácio de Loyola para a prática da teologia moral.

Embora o entendimento do Papa Francisco sobre a teologia moral, conforme defendido na “Evangelii Gaudium” (2013) e mais tarde na “Veritatis Gaudium” (2017), seja informado pela sua espiritualidade jesuíta, também está firmemente enraizado nos desenvolvimentos da disciplina inaugurada pelo Concílio Vaticano II, especialmente na “Gaudium et Spes” (1965), uma constituição seminal do Concílio que reflecte sobre a Igreja no mundo moderno. Precisamos de recuperar essa abordagem, disse o padre Martinez, “sem nos perdermos nos meandros da «Veritatis Splendor»”, a encíclica de 1993 na qual o Papa João Paulo II aborda o ensinamento moral da Igreja à luz das verdades fundamentais da doutrina Católica.

Perguntei ao padre Martinez se esta maneira de pensar era nova. “É praticamente nova em termos de teologia moral (pelo menos na forma como está a começar a ser implementada); não é novo para a vida espiritual”, explicou. “Podemos dizer que é quase nova na teologia moral porque o Concílio Vaticano II introduziu o conceito e o método na «Gaudium et Spes»”. Mas “isso não foi muito desenvolvido nos ensinamentos papais subsequentes”, sublinhou.

O Papa Francisco, por outro lado, “introduziu o discernimento nas circunstâncias concretas do casamento e da vida familiar para encontrar qual é a vontade de Deus no aqui e agora, para mim, como pessoa que tenta seguir a Cristo”, explicou. “Colocar o foco no discernimento para encontrar o bem é uma coisa realmente nova na teologia moral”.

Após o Concílio Vaticano II, “o magistério [ensinamentos papais] parecia não ter muitos problemas com o discernimento aplicado a questões sociais”, disse o sacerdote. “Era praticamente a reacção ou resposta oposta quando se tratava de aplicar o discernimento em questões de moralidade pessoal”. Mas, para o padre Martinez, “a vida moral é incompleta sem discernimento pessoal e pastoral”.

“Na «Humanae Vitae» (1968), por exemplo, o Papa Paulo VI tornou muito difícil a prática do discernimento em termos de moralidade pessoal”, disse o padre Martinez, acrescentando que o Papa João Paulo II fez o mesmo na “Veritatis Splendor”. Mas na “Amoris Laetitia”, o Papa Francisco deu a teólogos e pastores a tarefa de “tentar ver como aplicar o discernimento em todos os campos da vida moral”, disse. “Ele está a pedir a todos que façam isso, mas de maneira especial pastores e teólogos – e é disso que se trata esta conferência”.

 

Teologia moral após o Vaticano II e antes do Papa Francisco

Mas por que tem havido tanta resistência ao uso do discernimento em questões morais pessoais e não em questões sociais?

“Isso é um pouco mais complexo”, respondeu o padre Martinez. “No início, não havia o mesmo tipo de resistência às questões sociais. Mas, eventualmente, a resistência também surgiu em questões de moral social”, disse ele, citando dois casos.

Primeiro “quando a Igreja americana na década de 1980 implementou um método de participação através de diálogos e encontros para lidar com as questões relativas à paz (1983) e justiça económica (1986)”, lembrou, “o Vaticano considerou esse assunto problemático na altura”. Em segundo lugar, lembrou, “João Paulo II decidiu publicar a «Veritatis Splendor», para colocar ordem no campo da teologia moral católica”.

Ainda assim, acrescentou, “em questões pessoais relativas ao corpo, sexualidade e bioética; este é o campo da moralidade que é mais problemático, enquanto em questões sociais parece ser mais fácil”.

“É fundamental desatar os nós da «Veritatis Splendor» feitos na moral católica”, disse o padre Martinez, tendo cuidado para não atribuir a culpa por isso apenas ao Papa polonês. O sacerdote disse que os nós, de facto, já começaram a ser atados 25 anos antes com o lançamento da “Humanae Vitae”. Embora na “Gaudium et Spes” o concílio tenha pedido a pastores e teólogos “para discernir e considerar as circunstâncias ao lidar com casamento e vida familiar”, a “«Humanae Vitae» não o fez de maneira precisa”.

A “Veritatis Splendor” introduziu “um desenvolvimento muito profundo na teologia moral com a introdução do conceito a que chamamos de mal intrínseco”, afirmou. “Trata-se de um conceito filosófico controverso que trouxe sérias dificuldades para a teologia moral no desenvolvimento do caminho do diálogo e do discernimento; que é o caminho para colocar em acção uma consciência madura e bem formada”. Além disso, a “Veritatis Splendor” teve um impacto profundo na Igreja, ao insistir que o papel do magistério incluía “ensinar a moral de maneira muito precisa e clara”, afirmou. E, embora dê importância à consciência, que é “a norma próxima da moral pessoal”, explicou, citando a encíclica, “ela acaba por entender a consciência um pouco como uma instância da pessoa que deve saber o que diz o magistério e implementá-lo na sua vida”.

“A consciência é uma parte fundamental da moralidade. De facto, não se pode eliminar a consciência”, disse o padre Martinez. Mas a “Veritatis Splendor”, acrescentou, “tem muito medo daquilo que é chamado de «consciência criativa’»” e insiste que “a consciência não pode ser criativa. Tem que ser de alguma forma obediente às regras e às normas do magistério, e especialmente do magistério do Papa, cujo papel é reconhecer e formular as normas para que os fiéis possam conhecê-las e segui-las”.

O padre Martinez caracterizou este movimento como “uma hipertrofia [um desenvolvimento excessivo] do magistério no campo da teologia moral, que ocorreu durante o longo pontificado de João Paulo II”, disse. “Como resultado, o magistério fala sobre todas as questões de moral pessoal ou social – mas especialmente sobre a moral pessoal, moralidade sexual e violênci..” Com esta hipertrofia do magistério, apontou, “a consciência foi, em igual proporção, diminuída; mesmo que a «Veritatis Splendor» afirme que a consciência é a principal instância da moral”.

 

A “Amoris Laetitia” é mais do que uma teologia para o casamento e a vida familiar

Embora o casamento e a vida familiar possam ter sido “o ponto de partida da «Amoris Laetitia» e da conferência”, disse o padre Martinez, “se mudarmos a maneira como adquirimos conhecimento moral e mudarmos o método que estamos a aplicar para encontrar o bem na nossa vida, como a «Amoris Laetitia», então isso afecta todos os campos da moralidade, não apenas o casamento e a vida familiar”.

Tais mudanças “permitirão desatar os nós”, disse o padre Martinez, especialmente “aqueles que surgem de dentro da própria igreja”. Por isso, “é muito importante lidar com as questões que realmente precisam de ser abordadas, sem gastar energia em discussões internas ou manobras que levem a embates ou desqualificações”, disse. “A estrutura dos debates deve ser a das regras da teologia católica na igreja que Cristo constrói sobre Pedro e não as ideologias que exploram as doutrinas da fé para promover opiniões particulares”.

“A «Amoris Laetitia» irá permitir-nos desfazer outros nós que surgem com a mudança de época”, responsável por “gerar abundantes emaranhados e distorções ao sujeito moral”, explicou. “Ninguém pode prever a extensão ou a profundidade das mudanças no mundo económico e político, bem como no mundo do trabalho, hábitos de consumo e relações sociais”, ou “a aceleração da ciência e tecnologia em áreas como genética, neurociência e inteligência artificial”.

Diante de tudo isto, o padre Martínez convocou pastores e teólogos a “praticar uma hermenêutica da pessoa em diálogo com as outras ciências”. “Se agirmos assim, as nossas palavras e acções estarão prontas para dar testemunho de uma Igreja atenta ao bem que o Espírito derrama perante a fragilidade; uma igreja mãe, que, além de expressar com clareza o seu ensinamento objectivo, não renuncia ao bem possível, mesmo correndo o risco de se manchar com a lama do caminho”.

 

A “Amoris Laetitia” oferece um caminho para uma igreja mais sinodal, de escuta

O precedente estabelecido pela “Amoris Laetitia” significa que “a teologia moral tem hoje uma grande oportunidade de desenvolver… um novo paradigma de ensino Papal menos normativo e mais atento ao discernimento próprio dos fiéis e das várias conferências episcopais”, disse. “O magistério nem sempre deve oferecer uma palavra definitiva e completa; nem para resolver todos os problemas doutrinais, morais ou pastorais, nem para fornecer soluções homogéneas para todos os territórios”.

E é por isso que, para o padre Martinez, o Sínodo em andamento sobre a sinodalidade “oferece força”, sublinhou, à Igreja. O caminho sinodal “começa com a escuta do povo, que também participa na função profética de Cristo, e funciona de acordo com um princípio muito estimado na Igreja do primeiro milénio: o que toca a todos, todos devem aprovar”, afirmou. Além disso, o caminho “culmina na escuta do bispo de Roma, como pastor e doutor de todos os Cristãos”.

Artigo de Gerard O’Connell, publicado em America a 27 de Maio de 2022.