Arquidiocese de Braga -

20 setembro 2022

“Que fraternidade é que o suicídio assistido constrói?”

Fotografia DR

DACS com La Croix

Entrevista exclusiva do “La Croix” com D. Pierre d'Ornellas de Rennes, líder do grupo de Bioética da Conferência Episcopal Francesa, sobre o debate para legalizar a eutanásia em França.

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O presidente Emmanuel Macron anunciou recentemente planos para abrir um debate público nacional sobre questões relacionadas com o fim da vida, incluindo a possível legalização do suicídio assistido.

Isto acontece depois de o Comité Consultivo Nacional de Ética do país (CCNE) ter decidido que “a assistência activa à morte” poderia ser aplicada em França “sob certas estritas condições”.

Sob a lei actual desde 2016, os médicos franceses podem manter pacientes terminais sedados até à morte, mas o suicídio assistido não é legal.

A eutanásia é actualmente legal sob certas condições na Holanda, Bélgica, Luxemburgo, Espanha e Suíça.

Membros da Conferência Episcopal da França (CEF) denunciaram planos para a sua legalização no seu país.

O arcebispo Pierre d’Ornellas, de Rennes, líder do grupo de trabalho de Bioética da CEF, disse a Céline Hoyeau, do La Croix, que a legalização do suicídio assistido significaria a “relativização da proibição de matar”.

 

Até agora, o CCNE, que emitiu vários pareceres sobre o fim da vida, tem sido muito cauteloso sobre a morte activamente assistida. Desta vez, aponta que pode, sob certas condições, atender aos imperativos éticos da nossa sociedade. Qual é a sua reacção a esta opinião?

A pretexto de um pequeno número de casos, o CCNE abre caminho para a relativização da proibição de matar. Aliás, reconhece que é fundamental para a nossa sociedade. Isto cria uma séria reviravolta! Coloca diferentes direitos um ao lado do outro, procurando um “equilíbrio” sem hierarquia. A reflexão é incompleta, sem argumentos éticos reais. Isto afirma que a proibição de matar não é uma “intransigência”, como sugere o CCNE, mas fruto de uma reflexão ética que estabeleceu a prioridade!

 

Isto será discutido na convenção dos cidadãos anunciada pelo presidente Macron...

O debate anunciado merece o envolvimento de todos, em particular dos profissionais de saúde, daqueles que estão próximos dos doentes e das suas famílias, daqueles que vivem a realidade do fim da vida em toda a sua complexidade. Sobre este delicado tema, somente reflexões fundamentadas, alimentadas por uma visão do ser humano e amadurecidas pela escuta das experiências podem alimentar um verdadeiro diálogo onde todos procurem honestamente o caminho ético correcto para toda a sociedade.

 

Em que argumentos se vai basear?

A fé em Deus fornece intuições valiosas. Mas a razão tem argumentos sérios para a proibição de matar e pode iluminar todos os debates. Na questão do fim da vida, apelamos em 2018 à construção da fraternidade. Segundo Paul Ricoeur, essa construção passa pela aliança entre o paciente e o seu cuidador. Se não formos capazes de construir uma aliança com um ser humano frágil e sofredor, a ponto de eliminar a pessoa, a nossa sociedade está em perigo. A razão não aceita a contradição do CCNE quando legitima essa eliminação e, ao mesmo tempo, considera “intolerável” que pessoas dependentes se sintam desvalorizadas e excluídas. Devemos ir até ao fim da sua reflexão quando evoca “a subtil fecundidade inerente à experiência da vulnerabilidade”.

 

Os defensores da morte activamente assistida dizem que isto pode ser visto como um acto de compaixão.

O CCNE ousa escrever que é um gesto de fraternidade. Que abuso de linguagem! Que fraternidade é que o suicídio assistido constrói? Nenhum, já que a vida é retirada. A fraternidade é a construção de uma relação, de um futuro, por mais curto que seja. Provocar a morte ou causar a morte de uma pessoa é uma ruptura permanente de uma relação. Pelo contrário, a intenção de cuidar e acompanhar alguém para que tenha os momentos de vida o mais tranquilos possível, constrói uma fraternidade de vida. Se a compaixão não gera vida, não é compaixão!

 

Quais seriam as consequências de uma mudança na lei na nossa sociedade?

Perderíamos a proibição fundamental “não matarás”, que também está incluída no Juramento de Hipócrates. Essa proibição traça uma linha vermelha antes da qual somos colectivamente levados a discernir que esse outro frágil é nosso irmão ou irmã a ser acompanhado. Obrigações positivas surgem disto. Isto traz à tona em nós recursos surpreendentes da humanidade. Sem essa proibição, esses recursos deixarão de surgir e a sociedade será menos humana, mais violenta. Quando visito unidades de cuidados paliativos, fico impressionado com a qualidade de vida, a humanidade surpreendente que se encontra ali. Por outro lado, no acto que causa a morte, não há vida, mas sim uma ferida e menos humanidade. Esse acto é violência, mesmo vestida com qualificadores. A consciência humana não é feita para este acto, nem pessoal, nem socialmente.

 

A opinião do CCNE é baseada na noção de liberdade e autonomia. De que autonomia estamos a falar?

O CCNE vislumbra a autonomia numa sociedade individualista, visto que somos seres de relações. O individualismo nunca é o fim da história para um ser humano. Quando fragilizados, vivenciam a riqueza das relações. O dependente, doente, pode exercer a sua autonomia confiando no cuidado do outro. A autonomia só pode ser pensada dentro de uma relação que dê sentido, caso contrário corre-se o risco de prender o indivíduo num absurdo angustiante.

 

A opinião pública evoluiu nos últimos anos e muitos franceses dizem que estão abertos a uma mudança na lei...

Estão abertos porque são questionados quando estão em boas condições de saúde e porque desconhecem a relevância dos cuidados paliativos. São vítimas da grave deficiência do Estado, que não desenvolveu uma “cultura paliativa”.

 

Acredita no valor da convenção dos cidadãos, quando os Estados Gerais sobre Bioética e, mais recentemente, a Convenção dos Cidadãos sobre Mudanças Climáticas causaram muita decepção?

Essas decepções fazem-nos duvidar da democracia. Precisamos de lhes devolver as suas cartas de nobreza. Eu ficaria preocupado se a convenção fosse mobilizada por este único pensamento: a lei deve ser mudada porque as pessoas morrem mal em França e há abusos... Que simplismo! Para já, é urgente apostar nos hospitais e lares de idosos para que quem tem a missão de cuidar do próximo seja reconhecido e tenha meios para o fazer da melhor forma possível, em instituições ou em casa.

 

A lei actual sobre o fim da vida é realmente suficiente?

O parecer do CCNE destaca que o actual sistema legislativo é suficiente para tudo o que diz respeito a prognósticos vitais de curto prazo e que, “antes de qualquer reforma”, os cuidados paliativos devem ser desenvolvidos. A lei Claeys-Leonetti tem apenas seis anos. Não houve avaliação sobre isto. Faltam-nos, portanto, critérios. Seria honesto analisar de antemão a experiência desta lei e compensar o que está a faltar para que possa ser mais amplamente aplicada. Caso contrário, é uma ilusão para aqueles que gritam alto sobre algumas situações. Desde 1999, a lei estabelece que todo o cidadão tem direito a cuidados paliativos. Isto é verdade, estejam eles ou não no final da vida. No entanto, 26 departamentos [dos 101 departamentos administrativos da França] não têm serviços de cuidados paliativos! Todos sabemos que é urgente promover uma “cultura paliativa” em todos os lugares. É altura de o Estado ouvir isto!

Entrevista de Céline Hoyeau, publicada no La Croix a 20 de Setembro de 2022.