Arquidiocese de Braga -
31 dezembro 2022
Lombardi: Bento, uma vida passada ao encontro do rosto de Jesus
Vatican News - Frederico Lombardi
O ex-porta-voz de Bento XVI traça um perfil de Joseph Ratzinger e de sua extraordinária missão centrada na fé em Cristo. Uma fé sempre em diálogo com a razão e, portanto, com o mundo, em busca da verdade que não é um conjunto de conceitos, mas é o Amor qu
“Em breve me encontrarei enfrentando o juiz final da minha vida. Mesmo que olhando para trás em minha longa vida eu possa ter tantos motivos para temer e temer, ainda assim estou com o coração feliz porque confio firmemente que o Senhor não é apenas o juiz justo, mas ao mesmo tempo o amigo e irmão que já sofreu com minhas deficiências e, portanto, como juiz, é ao mesmo tempo meu advogado. Em vista da hora do julgamento, a graça de ser cristão torna-se clara para mim. Ser cristão me dá conhecimento, além disso, amizade com o juiz da minha vida e me permite cruzar a porta escura da morte com confiança. A este respeito, vem-nos constantemente à memória aquilo que João narra no início do Apocalipse: ele vê o Filho do homem em toda a sua grandeza e cai em plenitude como morto. Mas ele, colocando a mão direita sobre ele, diz-lhe: 'Não segure! Sou eu...' (cf. Ap 1,12-17)». Assim escreveu Bento XVI em sua última carta, datada de 6 de fevereiro, ao final de dolorosas jornadas “de exame de consciência e reflexão” sobre as críticas que lhe foram feitas por uma história de abusos quando era arcebispo de Mônaco, mais de 40 anos antes.
Finalmente chegou o momento do encontro com o Senhor. Certamente não se pode dizer que foi inesperado e que nosso grande ancião chegou despreparado. Se o seu predecessor nos deu um precioso e inesquecível testemunho de como viver na fé uma dolorosa doença progressiva até a morte, Bento XVI nos deu um belo testemunho de como viver na fé a crescente fragilidade da velhice por muitos anos até o fim. O fato de ter renunciado ao papado no momento oportuno permitiu a ele - e a nós com ele - trilhar esse caminho com muita serenidade.
Teve o dom de completar o seu caminho com a mente lúcida, aproximando-se com plena consciência daquelas "realidades últimas" sobre as quais teve a coragem de pensar e falar como poucos, graças à fé recebida e vivida. Tanto como teólogo quanto como papa, ele nos falou sobre isso de maneira profunda, crível e convincente. As suas páginas e as suas palavras sobre a escatologia, a sua encíclica sobre a esperança continuam a ser um dom para a Igreja que a sua oração silenciosa selou nos longos anos de retiro "na montanha".
Entre as tantas coisas que podem ser lembradas sobre seu pontificado, a que honestamente me pareceu e continua a me parecer a mais extraordinária foi que naqueles mesmos anos ele conseguiu escrever e completar sua trilogia sobre Jesus. Como poderia um papa, com as responsabilidades e preocupações da Igreja universal, que efetivamente carregava sobre os ombros, conseguir escrever uma obra como aquela? Certamente, foi o resultado de uma vida inteira de reflexão e pesquisa. Mas, sem dúvida, a paixão interior, a motivação deve ter sido formidável. Suas páginas saíram da pena de um estudioso, mas ao mesmo tempo de um crente que dedicou sua vida a buscar o encontro com o rosto de Jesus e que viu nisso ao mesmo tempo a realização de sua vocação e de seu serviço para os outros.
Neste sentido, embora compreenda bem porque deixou claro que aquela obra não devia ser considerada "magistério pontifício", continuo a pensar que é parte essencial do seu testemunho de serviço como papa, isto é, como crente que reconhece em Jesus o Filho de Deus, e em cuja fé podemos continuar a apoiar a nossa também. Nesse sentido, não posso considerar que o momento da decisão de renunciar ao papado, ou seja, o verão de 2012, coincida com o da conclusão da trilogia sobre Jesus. Tempo de cumprimento de uma missão centrada na fé em Jesus Cristo.
Não há dúvida de que o pontificado de Bento XVI se caracterizou mais por seu magistério do que por ação governamental. “Eu bem sabia que a minha força – se é que a tinha – era a de apresentar a fé de modo adequado à cultura do nosso tempo” (…). Uma fé sempre em diálogo com a razão, uma fé racional; uma razão aberta à fé. O Papa Ratzinger foi justamente respeitado por quem vive atento aos movimentos do pensamento e do espírito e procura ler os acontecimentos no seu sentido mais profundo e duradouro, sem se deter na superfície dos acontecimentos e das mudanças. Não é à toa que alguns de seus grandes discursos diante de platéias não só da Igreja, mas de representantes de toda a sociedade, em Londres, em Berlim ficaram gravados na memória... Ele não tinha medo de enfrentar ideias diferentes e posições, olhou com lealdade e clarividência para as grandes questões, para o ofuscamento da presença de Deus no horizonte da humanidade contemporânea, para as questões sobre o futuro da Igreja, especialmente no seu país e na Europa. E procurava enfrentar os problemas honestamente, sem fugir deles mesmo que fossem dramáticos; mas a fé e a compreensão da fé permitiram-lhe encontrar sempre uma perspectiva de esperança.
As proezas intelectuais e culturais de Joseph Ratzinger são conhecidas demais para que precisemos repetir seus elogios. João Paulo II foi quem soube compreendê-la e valorizá-la para a Igreja universal. Durante 24 anos dos 26 do pontificado de seu predecessor, Ratzinger foi prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. Duas personalidades diferentes mas – permitam-me dizê-lo – uma “combinação formidável”. O ilimitado pontificado do Papa Wojtyla não pode ser pensado adequadamente, do ponto de vista doutrinal, sem a presença do Cardeal Ratzinger e a confiança nele depositada, na sua teologia eclesial, na amplitude e equilíbrio do seu pensamento. Servir a unidade de fé da Igreja nas décadas seguintes ao Concílio Vaticano II, enfrentando as tensões e desafios da época no diálogo com o judaísmo, no ecumenismo, no diálogo com outras religiões, no confronto com o marxismo, no contexto da secularização e da transformação da a visão do homem e da sexualidade... podendo propor uma ampla e harmoniosa síntese doutrinal como a do Catecismo da Igreja Católica, acolhida pela grande maioria da comunidade eclesial com inesperado consenso, para levar esta comunidade a atravessar no limiar do terceiro milênio sentindo-se portador de uma mensagem de salvação para a humanidade...
Na realidade, aquela longuíssima e extraordinária colaboração foi a preparação para o pontificado de Bento XVI, visto pelos cardeais como o mais idôneo continuador e sucessor da obra do Papa Wojtyla. Um olhar de conjunto sobre o itinerário de Joseph Ratzinger não escapa - pelo contrário, impressiona - a continuidade de seu leitmotiv e ao mesmo tempo a progressiva ampliação do horizonte de seu serviço.
A vocação de Joseph Ratzinger foi desde o início uma vocação sacerdotal, ao mesmo tempo ao estudo teológico e ao serviço litúrgico e pastoral. Progride nas suas várias etapas, desde o seminário até às primeiras experiências pastorais e ao ensino universitário; depois o horizonte tem uma primeira grande ampliação para a experiência da Igreja universal com a participação no Concílio e a relação com os grandes teólogos da época; depois volta à atividade acadêmica de estudo teológico, mas sempre no centro do debate e da experiência eclesial; depois se expande novamente no serviço pastoral da grande arquidiocese de Mônaco; passa definitivamente ao serviço da Igreja universal com a chamada a Roma para guiar a Doutrina da Fé; enfim, um novo chamado o conduz ao governo de toda a comunidade da Igreja. O horizonte tornou-se total não só para o pensamento, mas também para o serviço sacerdotal e pastoral. Servir toda a comunidade da Igreja, conduzi-la com inteligência pelos caminhos do nosso tempo, salvaguardar a unidade e a genuinidade da sua fé. O lema escolhido por ocasião da ordenação episcopal, "Colaboradores da verdade" (3 João, 8), exprime muito bem todo o fio condutor da vida e da vocação de Joseph Ratzinger, se compreendermos que para ele a verdade não era de forma alguma um conjunto de conceitos abstratos, mas foi incorporado na pessoa de Jesus Cristo.
O pontificado de Bento XVI é e será comumente lembrado também como um pontificado marcado por tempos de crise e dificuldade. É verdade e não seria justo ignorar este aspecto. Mas deve ser visto e avaliado não superficialmente. Quanto às críticas e oposições internas ou externas, ele mesmo lembrou com um sorriso que vários outros papas tiveram que enfrentar momentos e situações muito mais dramáticas. Sem precisar voltar às perseguições dos primeiros séculos, bastava pensar em Pio IX ou Bento XV, quando condenava o "massacre inútil", ou nas situações dos papas durante as guerras mundiais. Portanto, ele não se considerava um mártir. Nenhum papa pode imaginar não encontrar críticas, dificuldades e tensões. Isso não quer dizer que, se necessário, ele soubesse reagir às críticas com vivacidade e decisão, como aconteceu com a inesquecível Carta escrita aos Bispos em 2009, após a história da remissão da excomunhão dos lefebvrianos e do "Williamson caso"; uma carta apaixonada da qual seu secretário me comentou que expressava "Ratzinger em seu estado puro".
Mas aquela que foi a cruz mais pesada de seu pontificado, cuja gravidade já havia começado a perceber durante o período que passou na Doutrina da Fé e que continua a se manifestar como uma prova e um desafio para a Igreja de significado histórico, é a história do abuso sexual. Isso também tem sido motivo de críticas e ataques pessoais a ele até os últimos anos, portanto também de profundo sofrimento. Tendo estado também muito envolvido nestes temas durante o seu pontificado, estou firmemente convencido de que ele viu a gravidade dos problemas cada vez com mais lucidez e teve grandes méritos em abordá-los com amplitude e profundidade de visão nas suas várias dimensões: escuta das vítimas, rigor na busca da justiça diante de crimes, curando feridas, estabelecendo regras e procedimentos apropriados, treinando e prevenindo danos. Foi apenas o início de uma longa caminhada, mas nas direções certas e com muita humildade. Bento nunca se preocupou com uma “imagem” de si mesmo ou da Igreja que não correspondesse à verdade. E mesmo neste campo ele sempre se moveu na perspectiva de um homem de fé. Além das medidas pastorais ou jurídicas necessárias para enfrentar o mal em suas manifestações, ele sentiu o terrível e misterioso poder do mal e a necessidade de apelar à graça para não nos deixar esmagar pelo desespero e encontrar o caminho da cura, da conversão, penitência, purificação, de que o povo, a Igreja e a sociedade precisam.
Quando me pediram para recordar brevemente, com um episódio, a história do pontificado de Bento XVI, recordei a vigília de oração durante a Jornada Mundial da Juventude em Madrid, em 2011, na grande esplanada do aeroporto Cuatro vientos, na qual cerca de um milhões de jovens participaram. Já era noite, a escuridão se adensava quando o Papa começou seu discurso. A certa altura houve um verdadeiro furacão de chuva e vento. Os sistemas de iluminação e som quebraram e muitas das tendas na beira da esplanada desabaram. A situação era realmente dramática. O papa foi convidado por seus colaboradores a se afastar e se abrigar, mas não quis. Permaneceu paciente e corajosamente sentado em seu assento no palco aberto, protegido por um simples guarda-chuva balançando ao vento. Toda a imensa assembléia seguiu seu exemplo, com confiança e paciência. Depois de algum tempo a tempestade acalmou, a chuva parou e uma grande calmaria completamente inesperada se instalou. As plantas voltaram a funcionar. O Papa terminou seu discurso e o maravilhoso ostensório da catedral de Toledo foi levado ao centro do palco para a adoração eucarística. O Papa ajoelhou-se em silêncio diante do Santíssimo Sacramento e atrás dele, na escuridão, a imensa assembléia unida em oração por um longo tempo em absoluta calma.
Em certo sentido, esta pode permanecer a imagem não só do pontificado, mas também da vida de Joseph Ratzinger e da meta do seu caminho. Enquanto ele agora entra em silêncio definitivo diante do Senhor, também nós continuamos a sentir atrás dele e com ele.
Frederico Lombardi
Presidente da Fundação do Vaticano Joseph Ratzinger-Benedict XVI
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