Arquidiocese de Braga -

27 abril 2023

Uma conversa com o Cónego João Aguiar

Fotografia DACS

DACS

Entrevista concedida ao Departamento Arquidiocesano para a Comunicação Social em 2017. Assista também o vídeo "5 minutos com... Padre João Aguiar Campos".

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Como se descreve em três palavras?

Padre, do Gerês, optimista. Padre porque é a minha identidade, a minha vocação e o meu modo de servir a sociedade e a Igreja. Do Gerês, da Serra do Gerês, de S. João do Campo, em Terras de Bouro, porque acho que a ruralidade, e concretamente a dureza daquela serra, afectou – no sentido positivo, muito! – a minha maneira de ser, de levar a vida, as metáforas, por exemplo, da minha escrita. E optimista porque sou capaz de encontrar uma semente, sempre, a empurrar o pedaço de terra que a cobre.

Por que decidiu ser padre?

Decidi ser padre porque houve um determinado momento na minha vida em que pensei, e é uma pergunta fundamental, no que é que “tu” podes ser. O que é que queres ser e o que é que o mundo precisa que sejas? Eu podia ser mais do que uma coisa... Vou dizer uma heresia, não sou daquelas pessoas que dizem “ah, se não fosse padre, não tinha outro caminho”, pois foi exactamente na pluralidade de caminhos que eu decidi amar desta forma. Porque se não houver cruzamentos em que eu siga uma determinada rota, não há grande vantagem, não há grande lucidez. Se houver cruzamentos, se houver alternativas, seguir uma significa querer um destino e amar esse destino o suficiente para prescindir dos outros.

O celibato nunca o fez pensar duas vezes na vida sacerdotal?

Evidentemente que antes de tomar essa decisão se pensa muito. Inconfidências? Vou fazer uma já... Fui ter com o meu Director Espiritual e pus um conjunto de objecções. Era um sacerdote jesuíta, o padre Ferraz. E depois de ele ouvir as minhas objecções todas disse: “tecnicamente parece que tens razão; mas não estás a contar com uma terceira pessoa metida no problema”. Eu só me via a mim e às minhas dificuldades, e ele disse-me: “não estás a contar com Deus aí metido nessa história”. Portanto, é uma decisão que se toma sempre com medo, com coragem e acreditando também que depois não nos vai faltar a graça para isso. É a mesma coisa quando um rapaz e uma rapariga decidem casar um com o outro. Fazem um acto de fé um no outro. E os dois começam um caminho. Naquele momento prometi um “para sempre” feito de “agoras”. Assim como uma linha recta é uma sequência ininterrupta de pontos, um “sempre” é uma sequência ininterrupta de “agoras”. E o que eu fui decidindo é viver cada “agora” nesta perspectiva. Sendo eu uma pessoa a quem o plural agrada muito – e a minha vida foi sempre esta, plural, em contacto com “B” ou com “C” – quando estou só nunca, nunca, nunca noto que estou só. Vivi em Lisboa perto de doze anos sozinho, no quarto andar de um prédio de não sei quantos apartamentos e nunca notei esse sentido do estar só. Não termos ninguém a nosso lado não significa que estejamos sós.

Tem sempre Deus consigo...

Sim, com certeza. E sempre com os outros! Temos que integrar a nossa afectividade: tenho amigos, tenho amigas, não tenho medo de dizer que amo, que quero bem, que tenho saudades, “dá cá um abraço”... não tenho medo disso! Assim que pusermos uma virtude dentro de um campo de concentração, ela deixa de ser uma virtude para começar a ser uma prisioneira.

É uma pessoa muito bem-disposta. O que o faz ficar de mau humor?

As pessoas olharem para tudo com ar de fastio. Todas aquelas pessoas que sofrem de vertigens e têm os dois pés no chão. Saem de casa num dia de sol com o guarda-chuva debaixo do braço porque há sempre a eventualidade de chover. Portanto, todas estas pessoas que sofrem com as eventualidades... “Ai porque é possível, ai porque é possível...”! E eu penso: onde é que estão os olhos desta pessoa num dia como hoje? Uma pessoa que saia num dia de sol como este de guarda-chuva debaixo do braço, de certeza que manca! Tem vergonha de usar a bengala e por isso traz o guarda-chuva para disfarçar... uma pessoa assim tira-me do sério! (risos)

Atravessa um momento difícil em termos de saúde, mas tem sempre um sorriso ou uma palavra de ânimo para os outros. E não é pela doença que vemos uma pessoa...

Não, não! A doença é uma circunstância. É um momento e é realmente um espaço, também, da nossa humanidade e da nossa relação com Deus. E o sofrimento – atenção, eu não sou masoquista, não sou daquelas pessoas que gosta de sofrer – é também uma oportunidade de amadurecimento e da valorização de umas coisas e da desvalorização de outras. Há muitas coisas que eram um problema e deixaram de ser um problema e há outras coisas que não valiam nada e hoje têm um valor extraordinário. Hoje estar com uma pessoa, rir com uma pessoa, ou dizer isto, ou olhar para si, ou torcer os olhos para a câmara a imaginar quem estará do outro lado a ver isto, é uma oportunidade, uma graça. De facto, tudo é graça.

Qual é a coisa que mais gosta de fazer?

Escrever. E fotografar. Fotografar é, aliás, uma outra forma de escrever: é escrever com luz. Ando quase sempre com a máquina fotográfica ou com o telemóvel porque isso obriga-me a estar atento ao pormenor. E obriga-me a ver, ou chama-me, convida-me, dá-me a oportunidade de ver coisas que noutros dias não via e depois fixá-las para as recordar. Em torno do que vejo, depois escrevo. E sou capaz de ver na minha horta, no muro, um melro e a sua maneira de olhar e sorrio perante aquilo a que eu chamo o olhar oblíquo do melro. Porque o melro olha sempre assim, com a cabecita de lado, lá está, o olhar oblíquo do melro... Estou a lembrar-me de uma das últimas fotografias, num campo que estava cheio de abóboras, e uma planta tinha subido pela rede do campo. E ficou uma abóbora metida na rede. Vi uma abóbora que morreu na luta pela liberdade. As outras todas aceitaram estar no campo e ser colhidas ali, aquela tentou sair... e ficou ali, uma abóbora na luta pela liberdade. E nós às vezes aceitamos resignadamente estar fechados, do lado de dentro do muro, a queixarmo-nos do muro, sabendo uma coisa: não há muros infinitos! Nem há muros infinitos no comprimento, por isso podem ser sempre contornados, não há muros infinitos em altura, por isso podem ser sempre subidos ou saltados, nem há muros infinitos na resistência, podem ser sempre derrubados. Por isso espetar o nariz contra o muro, e isto é uma regra elementar da existência do muro, é reconhecer a minha incapacidade de o saltar ou de ir buscar uma escada. É não reconhecer a minha capacidade de com alguma coisa como um catterpillar abrir o muro, ou então dar um passeio até à esquina do muro e contorná-lo. (risos)

Quando é que Deus pode? Volto a repetir: quando eu deixo. Porque Ele quer, quer sempre, de muitas e variadas formas e maneiras. Nunca desiste, ama-me como sou e, de facto, como diria o profeta e nisto acompanho-o, Deus é um sedutor. E quando nos apanha a linha dos olhos, a corda dos olhos, é muito difícil deixar de O olhar.

Pode falar-nos um pouco do seu recente livro, “Circunstâncias”?

O “Circunstâncias” tem duas partes. São sempre circunstâncias, isto é, parto sempre da minha realidade, daquilo que observo, do que vejo, do que sinto, do que toco. Na primeira parte, as circunstâncias são rezadas e termino sempre com um dirigir-me concretamente a Deus. A segunda parte é pura e simplesmente observação, meditação. Mas embora tenha um pensamento de fundo, já não termina em oração, é aquilo que me rodeia. Rodeia-me a mesa de um restaurante, rodeia-me uma criança, é feito de histórias... Posso até contar uma: um dia ia a caminho da missa, no eléctrico 28, e uma senhora que ia habitualmente à missa às 8h, a que eu celebrava, disse: “bom dia, senhor padre!”. E uma criança que ia com a mãe perguntou-me: “ai tu és padre?”. Eu disse que sim. “Eu ando na catequese”, respondeu ele. E a mãe preocupada disse-lhe para não incomodar “o senhor padre”. Eu disse que não incomodava nada e aquela mãe, vendo que dava para conversar, disse-me que o menino andava na catequese, que gostava muito que era muito bom menino... E o miúdo, que queria ser ele a dirigir a conversa, perguntou-me se eu queria que ele me emprestasse o livro dele, o da catequese. E eu respondi ao menino, disse-lhe que não, que ele precisava do livro. E ele disse que agora não precisava, que a catequese estava de férias. E a mãe: “ó filho, mas para que é que o senhor padre quer o catecismo?”. E ele respondeu: “oh, para aprender”! (risos) E foi uma gargalhada ali no eléctrico porque uma criança, a seguir àquele “para aprender” reconduziu-me àquela canção “menino, queres ser meu mestre?”. É uma circunstância que é ali vivida, naquele momento, e que depois é transferida. Se não fazemos como as crianças, se não temos este olhar simples e puro da vida, se não somos capazes das perguntas alegadamente inconvenientes, aquelas que a mãe considerava um estorvo e que eu achei uma delícia... Outra circunstância: desço a Rua do Carmo e encontro um senhor em gemidos e a perna toda ligada, com uma canadiana... E eu vou-lhe dar a esmola e desejo-lhe as melhoras. No dia seguinte, na mesma rua, o mesmo senhor, a mesma ladainha, só que as ligaduras estavam noutra perna. Atravessei a rua, fui junto dele e disse-lhe: “olhe, eu desejei-lhe as melhoras, não desejei que a doença mudasse de perna”... (risos). Portanto, eu vivo as minhas circunstâncias assim, sempre atento e tranquilamente.

E tem novo livro em projecto...

Tenho, ainda hoje falei dele. Mais uma vez as circunstâncias. Percorri em alguns momentos, fisicamente e depois na memória, o pequeno rio da minha terra. E rio abaixo, percorrendo-o até ao momento em que ele se há-de perder noutro, eu vou parando e vou reflectindo sobre o salgueiro que ali espetei e hoje é uma árvore, vou reflectindo sobre o vidoeiro, sobre o moinho, o túnel, a cabra cega, a truta, a cobra de água... Depois vejo que aquele meu rio chega ao momento em que perde a sua identidade e se junta ao Homem. Chega o momento em que o Homem, onde discretamente o meu rio é um litro de água, se junta ao Cávado. Chega ao momento em que o Cávado, que já é um rio maior, se perde no mar. Eu termino dizendo que o meu rio é, neste momento, no mar, uma gota daquele azul. Ninguém sabe que ele está ali, mas ele ali, na gota azul, perdida no mar, está realizado.

Já alguma vez esteve com o Papa? O que pensa dele?

Já estive, mas ele no sítio dele, eu no meu. Mas encontrarmo-nos para eu lhe dar um abraço ou para receber dele um abraço – porque imagino que às tantas lhe dava mesmo um abraço – e também imagino que ele ao olhar para mim e ver a minha cara efectivamente tão tranquila também dissesse “hombre, un abrazo”?. Ainda não. (risos) Mas vi-o assim bastante próximo e carrancudo em Roma, quando D. Manuel Clemente foi criado Cardeal! Vi-o com os recados todos que deu aos Cardeais, com ar de quem estava a falar muito, muito a sério. E recolhi a uma altura do Cirector do Centro de Comunicação Televisiva do Vaticano, Edoardo Viganò, uma explicação entre a diferença de comunicação de Francisco e de Bento XVI. Explicou como abraçavam, como se dirigiam às pessoas. O Bento XVI dirige-se às pessoas com os braços “para fora”, para apanhar os antebraços e cumprimentar, mas mantendo aqueles dois palmos, digamos assim, com um certo domínio sobre a situação. Francisco é de braços abertos, ao estilo sul-americano onde ou abraça, ou pensa que está a passar de lado. De maneira que se estivesse com o Papa Francisco era só para lhe dizer isso e para lhe dizer que a forma de comunicar dele me apaixona porque a acho extraordinariamente evangélica, está cheia de vida. Diria que está cheia de vassouras, de dracmas, está cheia desta simplicidade que por vezes pode ser muito complicada porque a descodificação dessa linguagem simples pode levar a algum mal-entendido, mas é um dom de Deus.

Acha que está a criar uma revolução na Igreja?

Na minha perspectiva está a dizer-nos que não estávamos a olhar para algumas coisas que nos acompanham ao longo da vida. Dou um exemplo: há dias, passeava com um colega meu, também já aposentado, e íamos por uma avenida de Braga abaixo e ele dizia que Braga tem fachadas muito bonitas. E ambos concluímos que já tinha fachadas muito bonitas há anos. Só que nós não tínhamos tido tempo de meter as mãos nos bolsos e ir sem tempo, desprendidamente, pelas avenidas abaixo! Este Papa, nestas “avenidas”, obrigou-nos a olhar para o lado. Se quisermos, obrigou-nos a pensar que um bom samaritano olha para o lado, um fariseu ou um doutor da lei é que vão a correr para o templo sem olhar para o lado. (...)

Como é que Deus pode mudar a vida das pessoas?

O coração – não posso dizer que tenha duas chaves – abre por dentro. Por isso Deus bate e pode abrir quando tu deixares. Quando Jesus chora por Jerusalém, que diz? “Jerusalém, Jerusalém, quantas vezes eu quis?”. Mas Deus não arromba... Chega à porta e bate. “Se me abrires, entro, saio e fico”. Ele não cessa de bater. Por isso é que num dos meus textos escrevi: “entra, Senhor, a casa é Tua. Eu sou um vagabundo fugido à rua. Eu sou um ocupa. Por isso entra.”. E, noutra altura, pus-me ao lado de Deus e disse: “tenho suavemente tocado com a polpa dos meus dedos o batente da Tua porta. No dia em que ela estiver encostada, eu entro”. Quando é que Deus pode? Volto a repetir: quando eu deixo. Porque Ele quer, quer sempre, de muitas e variadas formas e maneiras. Nunca desiste, ama-me como sou e, de facto, como diria o profeta e nisto acompanho-o, Deus é um sedutor. E quando nos apanha a linha dos olhos, a corda dos olhos, é muito difícil deixar de O olhar.