Arquidiocese de Braga -

5 maio 2023

É hora de atenção, prevenção e intervenção

Fotografia Arquivo/Avelino Lima

Intervenção de D. Nuno Almeida, Bispo Auxiliar da Arquidiocese de Braga, no Seminário “Cuidado e Proteção de Menores e Pessoas Vulneráveis”, promovido pela Universidade Católica Portuguesa - Braga na manhã do dia 5 de maio

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A realização deste Seminário “Cuidado e Proteção de Menores e Pessoas Vulneráveis” é um claro sinal de que a Universidade Católica está linha da frente da luta contra os abusos, o encobrimento e a indiferença, procurando participar numa verdadeira aliança preventiva com todo o Povo de Deus e com a sociedade, para que seja possível erradicar todas as formas de abuso sexual, de consciência e de poder. Agradecemos à UCP, pois está a contribuir ativamente para uma cultura do respeito pela dignidade da pessoa humana.

A realização e publicação do “Relatório da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais contra as Crianças na Igreja Católica Portuguesa” (14.02.2023) reforça a responsabilidade de cada um de nós, de cada Diocese, da Conferência Episcopal, dos Institutos Religiosos, Movimentos, Obras e de todas as instituições da Igreja, como a Universidade Católica. 

Estamos todos convocados a empenhar-nos, decididamente, em garantir que as atividades letivas e pastorais se desenvolvam sempre em ambientes sãos e seguros. Trata-se, portanto, de percorrermos juntos, sinodalmente, o caminho do discernimento pastoral. De facto, acrise dos abusos sexuais na Igreja exige que coloquemos em prática uma pastoral integral, que articule atenção (reconhecer), prevenção (interpretar) e intervenção (decidir).

 

1.Prestar toda a atenção (reconhecer)

Reconhecemos que há vítimas, abusadores e silenciadores. Temos consciência de que foram, de facto, as vítimas que começaram a fazer ouvir a sua voz, a querer recuperar o tempo perdido por causa de sentimentos de culpa, de vergonha e de raiva, frustração e de escândalo.

O Relatório confirma que perante indícios ou provas de abusos, no passado, houve: desvalorização, encobrimentos ou silenciamentos, transferência de sacerdotes de um lugar para outro, ingénuas reparações privadas na ilusão de compensar o dano sofrido pelas vítimas. 

Reconhecemos que a luta contra os abusos sexuais por parte de membros da Igreja ou no âmbito das suas atividades, no passado, não foi uma prioridade para a Igreja e houve erros, omissões e negligência.

Reconhecemos que houve mensagens confusas e contraditórias, sobre o modo de agir na hora atual.

Reconhecemos que temos muita dificuldade em fomentar uma cultura de prevenção.

 

2.Prevenção (interpretar atempadamente)

Precisamos de fazer um esforço para interpretar o que estamos a viver, considerando que a atual crise dos abusos é, sem dúvida, uma evolução ética da humanidade, a exigir que continuemos a fazer tudo o que for possível para que a infância seja valorizada como deve e se consolide, a nível ético e jurídico, o respeito pelas crianças.

A pastoral de prevenção é uma ação que inclui a ótica interdisciplinar. Não é possível realizar nenhuma ação eclesial, especialmente a crise dos abusos, somente a partir do olhar intraeclesial e intrateológico; é necessário contar com a perspetiva das ciências. Tudo isto mediante uma relação equitativa e equilibrada particularmente com as ciências humanas, não simplesmente vistas como auxiliares, mas sim como parte dialogante (parceiras) na construção e na prossecução de objetivos comuns. Uma interdisciplinaridade em diálogo franco e simétrico ajuda enormemente a ação pastoral integral, pois é ilusório e irresponsável pensar que as ações pastorais preventivas se podem realizar única e exclusivamente a partir da teologia, do magistério e do direito canónico. É preciso uma alta dose de humildade e de modéstia por parte da ação pastoral e de quem a leva por diante, para se deixar guiar e questionar pelas perspetivas especializadas das ciências humanas.

Trata-se de uma pastoral que se situa para lá de todo o determinismo e também do mero acaso, permitindo a abertura aos planos de Deus e à sua presença sempre surpreendente na história.

Procuramos pôr em prática uma pastoral mais do que preventiva. Desejamos uma pastoral com visão, que se antecipe reflexivamente às ameaças e tenha como objetivo não somente adaptar-se às mudanças, mas também gerá-las e orientá-las para o objetivo maior de Jesus Cristo e do seu projeto do Reino como paradigma de atuação pastoral. Uma visão de futuro que provoque as mudanças necessárias na Igreja.

Há que olhar de frente os abusos sexuais na Igreja e assumi-los, sofrê-los juntamente com as vítimas, as suas famílias e comunidades para encontrar caminhos que, com verdade, possamos dizer: nunca mais a cultura do abuso, da indiferença, do silêncio, do encobrimento.

Esta realidade convoca-nos para a consciencialização, para a prevenção, para a promoção da cultura do cuidado e proteção nas nossas comunidades e na sociedade em geral para que nenhuma pessoa veja violada ou maltratada a sua integridade e dignidade. Toda a vida exige ser respeitada e valorizada; especialmente a dos mais indefesos e que não têm voz. A necessária denúncia tem de ir sempre acompanhada de um anúncio que a todos nos fará bem sempre escutar: “Tudo o que fizerdes ao mais pequeno dos meus irmãos, é a Mim que o fazeis” (Mt 25, 40).

Os abusos sexuais de menores e pessoas vulneráveis dentro da Igreja são, em si mesmos, uma traição à sua identidade e à missão.

Os abusos são autênticos “homicídios psicológicos” devido às consequências irreparáveis que podem ter para a saúde mental e espiritual. Destroem a infância, causando danos físicos, psicológicos e espirituais. 

Os escândalos deixaram de se considerar somente uma responsabilidade pessoal do agressor e, por isso, exigem um olhar sistémico-eclesial que amplie o espaço de responsabilidade de maneira mais honesta. A responsabilidade é também da instituição eclesial, da qual o agressor e a vítima são integrantes. 

Temos consciência de que são devastadoras a negligência e a falta de transparência, bem como a desorganização. O abuso não somente o comete o agressor, mas também uma Igreja ou instituição negligente, permissiva e silenciosa que permite, ou pelo menos tolera, tal abuso.

 

3.Intervenção (decidir) 

É necessário e urgente promover transversalmente em todos os níveis e instituições da ação eclesial, uma pastoral integral, caraterizada pela atenção, prevenção e intervenção. Os factos dizem-nos – e contra factos não há argumentos – que, perante os problemas de abusos de menores, se continua a trabalhar mais numa pastoral de contenção, muitas vezes tardia e insuficiente. A pastoral de contenção pode assemelhar-se à tentativa de colocar certos diques ou paliativos perante uma situação problemática que se vive. É tentar conter uma avalanche de problemas sem saber o que fazer. Espontaneamente tenta-se a solução com discursos e declarações; palavras que consolam momentaneamente, mas nada resolvem. Por tudo isto, é necessário tomar consciência de um passo prévio e promover uma pastoral de prevenção, para não cairmos sempre no “declaracionismo”. De facto, pastoralmente não basta a contenção, é necessária a prevenção e a intervenção feita de acolhimento, acompanhamento, cura e reconciliação.

É preciso criar as condições para que qualquer pessoa que tenha sido vítima por um membro da Igreja se sinta segura no momento de o testemunhar. Que saibamos oferecer mecanismos de proteção e garantir-lhes um acompanhamento, tanto espiritual como pessoal, tanto na fase dos trâmites judiciais como no quotidiano das suas vidas. 

É hora de decidir e agir,como recentemente e mais uma vez lembrou o Papa Francisco, acrescentando que “não basta pedir perdão às vítimas”. Continuam atualíssimas e veementes as suas palavras na carta de 2 de fevereiro de 2015 dirigida aos Presidentes das Conferências Episcopais: “É necessário continuar a fazer tudo o que for possível para desenraizar da Igreja a chaga dos abusos sexuais contra menores e abrir um caminho de reconciliação e de cura a favor de quantos foram abusados”.

Abrir caminhos de reconciliação e de cura a favor de quantos foram abusados.  Para além da disponibilidade, por parte da Comissão de Proteção de Menores e Pessoas Vulneráveis da Arquidiocese, para acolher e acompanhar as vítimas, urgedisponibilizar pessoas e programas de acompanhamento psiquiátrico e psicoterapêutico, bem como de acompanhamento espiritual e de reconciliação para as vítimas que o desejarem. É absolutamente necessária a criação de uma “bolsa de técnicos” e de acompanhadores espirituais.

É preciso, para além de aperfeiçoarmos os mecanismos que já existem, tentar a cooperação entre as Comissões Diocesanas e as CPCJ de cada concelho.

É necessário manter um canal de comunicação com o Ministério Público ou Polícia Judiciária.

Poderá ser muito útil encontrar formas de colaboração com a APAV.

Abrir caminhos de reconciliação e de cura para os agressores.A Igreja poderá ter de retirar o agressor identificado da atividade pastoral, mas não o deve abandonar, porque a “redenção é sempre possível”, embora só com a “admissão da culpa” por parte do alegado criminoso.

O alegado agressor não pode ser abandonado. O primado é o da justiça, como defendia Bento XVI e agora o Papa Francisco, mas nunca pondo de lado a oferta de redenção, de perdão, reconciliação e cura. 

Como discípulos de Cristo, acreditamos que uma pessoa se pode abrir à graça do perdão e deixar-se transformar, ninguém está irremediavelmente perdido. Há sempre essa possibilidade, mas tem de passar pela capacidade de admitir a culpa e pelo difícil equilíbrio entre a justiça, verdade e a misericórdia.

São necessários programas de acompanhamento psiquiátrico e psicoterapêutico, de acompanhamento espiritual e de reconciliação para as vítimas nem para abusadores. 

Além do que já foi dito, é preciso garantir que as crianças, os jovens e adultos vulneráveis estão protegidos de abuso sexual e de outros abusos nas instituições da igreja, através de: Diretrizes (Manual) que estabeleçam boas práticas éticas e profissionais dirigidas a todos os que trabalham nas nossas paróquias, movimentos, escolas, instituições, funcionários ou voluntários. 

A partir das normas que estão em vigor, é preciso definir modos de atuação claros que respondam adequadamente a qualquer tipo de acusação de abuso sexual ou outros. 

Todas as diretrizes e protocolos devem estar de acordo com a legislação em vigor no nosso país, com o Direito Canónico, sem nunca esquecer o bom senso.

 

Conclusão 

É preciso reforçar uma nova consciência sobre o poder de cada um para saber ouvir e ler os sinais de alerta, pois não é possível manter a impunidade nem o silêncio. 

Que estes dias duros que vivemos, de via purgativa, de estrada penitencial, nos levem a caminhos novos em ordem a comunidades e instituições cristãs sãs e seguras, conscientes de que não pode continuar a haver vítimas, agressores e silenciadores.

Se um membro padece, todos os membros padecem com ele” (1 Cor 12, 26).  As palavras de S. Paulo lembram que todos somos chamados a trabalhar, sem tréguas, contra a tragédia dos abusos. Que todos nós, fazendo nossa a dor das vítimas e das suas famílias, saibamos detetar os sinais indeléveis que os abusos deixam. A atenção e cuidado com as vítimas é o alicerce sobre o qual se pode construir uma nova cultura de prevenção e de luta contra os abusos. 

 

+Nuno Almeida

Bispo auxiliar de Braga