Arquidiocese de Braga -

12 outubro 2023

"Precisamos de abrir as comunidades à Universalidade"

Fotografia Correio de Coimbra

Correio de Coimbra

Às portas do Dia Mundial das Missões de 2023 (22 de outubro), sob o tema “Corações ardentes, pés a caminho”, o Correio de Coimbra entrevista o Pe. José António Mendes Rebelo, comboniano e Diretor Nacional das Obras Missionárias Pontifícias (OMP). Com foto

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Correio de Coimbra

Pe. José Rebelo, agradecendo a sua disponibilidade para conversar connosco, começaria por lhe perguntar, enquanto Diretor das Obras Missionárias Pontifícias em Portugal, como está organizada a pastoral missionária em Portugal, tanto a nível nacional como local?

José António Rebelo

Importa desde logo dizer que as Obras Missionárias Pontifícias (OMP) se constituem em quatro Obras: a Obra da Propagação da Fé; a Obra da Infância Missionária; a Obra de São Pedro; e a Obra da União Missionária. Há um objetivo comum a todas elas: serem uma rede de oração e solidariedade. A oração, segundo o Papa Francisco é o primeiro ato de missão. Ao rezarmos, abrimos o nosso coração ao mundo e, com isso, cresce o nosso empenho no trabalho na vinha de Deus. Depois, a solidariedade entre as Igrejas, a nível espiritual e a nível material, de modo que as Igrejas com mais posses ajudem as jovens Igrejas no sul do mundo. O Santo Padre ajuda, presentemente, 939 dioceses no mundo, que são aquelas dioceses que tradicionalmente dependiam da Congregação para a Evangelização dos Povos, e que continuam a necessitar de ajuda.

O trabalho das OMP é, fundamentalmente, manter viva a chama da missão na Igreja em Portugal. Isto é feito em parceria com os Institutos Missionários, e gostaríamos que fosse feito também com todas as Dioceses. De facto, cada Diocese deveria ter um Centro Missionário, conforme diz a Carta “Para um rosto missionário da Igreja em Portugal”, da Conferência Episcopal Portuguesa (2010). Ou ao menos que tivesse um Diretor Diocesano. Assim, poderíamos trabalhar em rede, a Direção nacional em coordenação com os Centros diocesanos. Mas estamos a falhar bastante neste aspecto, porque há dioceses – como Coimbra – que não têm, desde há muitos anos, um Diretor diocesano. Sem esse trabalho de rede, torna-se difícil chegarmos a todos. Podemos fazer parcerias com a comunicação social, com os Institutos missionários, com outros organismos que trabalhem para o bem da missão, mas depois falhamos no terreno, em fazer chegar a mensagem às comunidades.

A criação dos Centros Missionários diocesanos é uma necessidade premente, até porque temos vindo a assistir em Portugal a uma diminuição do vigor missionário ad gentes, visível na diminuição do número de missionários que trabalham fora do país e também na ajuda que damos. O ano passado houve uma diocese que partilhou em média 7€ por paróquia, para o fundo de solidariedade com que o Santo Padre ajuda as jovens Igrejas! Isto, de facto, é pobre. Precisamos de trabalhar pela renovação das comunidades e abri-las à universalidade, apesar das carências que possamos sentir. As pessoas são sensíveis à dimensão missionária e não requer muito para constatar o seu empenho.

Cada Diocese deveria ter um Centro Missionário, conforme diz a Carta “Para um rosto missionário da Igreja em Portugal”, da Conferência Episcopal Portuguesa (2010). Ou ao menos que tivesse um Diretor Diocesano. Assim, poderíamos trabalhar em rede, a Direção nacional em coordenação com os Centros diocesanos.

Para além da dimensão comum de oração e solidariedade, quais são os objetivos concretos de cada Obra?

A Obra da Propagação da Fé recolhe fundos com que o Santo Padre apoia, através de subsídios regulares e extraordinários, 939 dioceses mais pobres em África, América Latina, Ásia e Oceânia, a ter esquemas de saúde para o clero, a pagar as pensões de muitos dos seus bispos eméritos, a manter as estruturas diocesanas e outras necessidades que seria difícil serem apoiadas por outras entidades; e apoia a formação de catequistas, as obras apostólicas e sociais, os mass media, as escolas, os colégios e as universidades (inclusivamente os seis colégios romanos a cargo da Propagação da Fé), a construção de igrejas e capelas e a compra de meios de transporte, algumas nunciaturas apostólicas, entre outras coisas.

O peditório que fazemos no Dia Mundial das Missões, na prática o único peditório que temos em Portugal, reverte em favor dessas Igrejas.

A Obra da Infância Missionária destina-se às crianças: “crianças ajudam crianças”! Crianças que rezam por crianças, que procuram abrir-se o mundo, conhecer melhor as necessidades dos outros e que ajudam as crianças menos privilegiadas. O que sugerimos é que as crianças façam uma caminhada missionária durante o Advento (e/ou Quaresma) e usem o Mealheiro Missionário para crescerem na solidariedade e na partilha. Esta caminhada deve ter o seu ponto alto na festa da Epifania, a Festa da Infância Missionária. Pode ser verdadeiramente um percurso interessante para todos os grupos de catequese. É com o pouco que é recolhido nesses mealheiros que ajudamos alguns projetos, sobretudo nos PALOP.

A Obra de São Pedro foi criada a pensar na formação do clero e dos religiosos nestas jovens Igrejas, para que eles sejam pastores à altura dos contextos do mundo e das necessidades da evangelização.

A última Obra, a União Missionária Pontifícia, foi pensada para os agentes pastorais – padres, religiosos, leigos – para os ajudar a crescer na abertura missionária e na solicitude pela evangelização universal. Digamos que é uma obra que procura formar os líderes, ajudando-os a renovar-se e abrir-se à missão.

A propósito, as Obras Missionárias Pontifícias fizeram há pouco tempo um congresso missionário. Que linhas-força saíram desse congresso?

Mais do que definir linhas-força, o congresso pretendia estabelecer diálogo com os irmãos separados e com as outras religiões, a partir da consideração da fraternidade universal e da amizade social. Portanto, a ideia era criar um momento de dinamismo ecuménico e inter-religioso a partir dos desafios do Papa Francisco, expressos no Documento de Abu Dhabi e na Fratelli tutti, chamando a atenção sobre a responsabilidade que nós próprios temos no crescimento dessa amizade social: criar pontes, cimentar relações, não deixar esmorecer a colaboração. Penso que não resultou tanto quanto gostaríamos, algumas confissões religiosas aderiram, estiveram sempre presentes e aumentou a comunhão entre nós, mas não teve a repercussão que nós esperávamos, nem dentro da Igreja, nem no âmbito inter-religioso e ecuménico. Vamos publicar as comunicações no dia 22 de outubro, em Lisboa.

Que retrato nos faz dos Institutos Religiosos em Portugal, por exemplo em termos de faixas etárias ou vocações?

É sempre difícil falar por todos, mas no geral parece notar-se alguma incapacidade para atrair novas vocações e há um certo envelhecimento dos seus membros. Isto até é de certo modo compreensível, porque a vocação missionária é uma vocação muito exigente, que requer desinstalação, sair da terra, sair da própria zona de conforto, abraçar um novo povo, uma nova cultura, aprender novas línguas... Requer muito despojamento, muita humildade e a cultura não está para aí virada. A diminuição do número de missionários torna difícil manter alguns compromissos que as congregações tinham e continuar a fazer a animação missionária que gostaríamos e que poderia ajudar a renovar as nossas comunidades cristãs.

A vocação missionária é uma vocação muito exigente, que requer desinstalação, sair da terra, sair da própria zona de conforto, abraçar um novo povo, uma nova cultura, aprender novas línguas… Requer muito despojamento, muita humildade e a cultura não está para aí virada.

Em que medida a missão ad gentes pode também enriquecer a nossa pastoral?

A missão universal dá novas perspectivas à nossa pastoral, ou missão ad intra. A missão enriquece-nos, dá-nos vitalidade. No livro dos Atos dos Apóstolos lemos que a Igreja de Antioquia enviou Paulo e Barnabé, mas depois, quando eles regressam à comunidade, trazem experiências e dificuldades que são levadas ao chamado ‘Concílio de Jerusalém’. Portanto, a comunidade que envia é também, depois, levada a repensar a sua vida e o seu dinamismo missionário. E a missão universal, nesse sentido, pode ajudar a Igreja local. Ao pensarmos nas necessidades dos outros somos levados a relativizar as nossas. Por exemplo, nós aqui queixamo-nos da falta de clero; mas se nos lembrarmos que em muitos países há extensões imensas em que é difícil ao sacerdote chegar a todas pessoas, percebemos melhor quanto enriquecimento há para a Igreja na participação dos leigos.

Por isso, é imperativo renovar a nossa pastoral a contar mais com os leigos; e a centrar-se no essencial e não no acessório... É por isso que o Papa diz que o trabalho missionário deveria ser o paradigma, o modelo, de todo o trabalho pastoral: centrado na evangelização, centrado em ajudar as comunidades a serem comunidades de testemunho, de partilha, de proximidade, que visitam os doentes, que dialogam com todos; uma pastoral em que o acento não é nos sacramentos, na Eucaristia, mas na catequese, no encontro com as comunidades, no encontro com os jovens. Da minha experiência, nas comunidades onde trabalhei na África do Sul e que depois da minha saída mais cresceram, pelo que me disseram, foram aquelas aonde eu dei catequese pelo menos durante seis meses já depois do programa dos catequistas. Ora, com a diminuição do clero, os padres tendem a centrar-se muito nas missas, nos sacramentos... Não oiço falar de padres que dão catequese, que é uma oportunidade soberana para repensar e partilhar a fé, se possível com novas linguagens!

É interessante que o Papa Francisco, no documento com que renova a Cúria romana, a “Praedicate Evangelium”, pôs o Dicastério para a Evangelização em primeiro lugar e diretamente na sua dependência. Isto significa que, de um modo prático, ele quer verdadeiramente que a evangelização seja o eixo condutor de tudo. Por isso, seria importante haver nas dioceses um centro missionário, que coordenasse a pastoral e a ajudasse a focar no essencial.

É imperativo renovar a nossa pastoral a contar mais com os leigos; e a centrar-se no essencial e não no acessório… É por isso que o Papa diz que o trabalho missionário deveria ser o paradigma, o modelo, de todo o trabalho pastoral: centrado na evangelização, centrado em ajudar as comunidades a serem comunidades de testemunho, de partilha, de proximidade, que visitam os doentes, que dialogam com todos; uma pastoral em que o acento não é nos sacramentos, na Eucaristia, mas na catequese, no encontro com as comunidades, no encontro com os jovens.

A questão da liberdade/perseguição religiosa é atualmente impeditiva da missão ad gentes para missionários portugueses?

Não creio. Há problemas em alguns países, mas no geral quem sofre são as comunidades locais. Agora, claro, os missionários são estrangeiros e isso condiciona-lhes a liberdade, ou seja, têm de ter cuidado com o que dizem e fazem. Em geral, os países não impedem a entrada de missionários, mas não gostam que eles sejam proféticos, que denunciem as injustiças e estejam demasiado perto dos excluídos, no que eles chamam “meter-se em política”. No dia em que o missionário diga coisas menos agradáveis em relação aos governos, é fácil pô-lo a andar. Têm leis para isso, que são usadas quando é conveniente. Conheci vários missionários que foram expulsos, ou que viveram underground, ocultos, meses e anos, especialmente nas Filipinas. Quando partimos, em geral, já temos a noção das dificuldades que vamos encontrar, mas a falta de liberdade religiosa só é mais sentida no mundo Islâmico.

Em geral, os países não impedem a entrada de missionários, mas não gostam que eles sejam proféticos, que denunciem as injustiças e estejam demasiado perto dos excluídos, no que eles chamam “meter-se em política”. No dia em que o missionário diga coisas menos agradáveis em relação aos governos, é fácil pô-lo a andar.

Entretanto, temos o movimento inverso, que é o dos missionários que chegam a Portugal, vindos da América do Sul, de África... Como está a ser acompanhado esse trabalho?

A vinda de missionários de outros países para Portugal tem realmente crescido, seja para as dioceses seja para os Institutos, mas não depende das OMP. Penso que a maioria deles seja fidei donum (padres missionários diocesanos). Alguns regressam às Dioceses de origem, outros ficam por cá. O movimento fidei donum não ganhou tracção em Portugal. Mas conheci o caso de um português que foi para o Brasil e se tornou lá bispo. Em todo o caso, este movimento gerado pelas Dioceses, e também pelos Institutos, é bom, porque cria internacionalidade. Mas quem chega deve também fazer o mesmo esforço de adaptação à língua e à cultura que nós fazemos quando vamos para outros países. De qualquer maneira, o esforço de inculturação não é apenas para os estrangeiros! É para todos nós, sobretudo quando passamos muito tempo fora do país: temos que fazer um esforço para comunicarmos a nossa experiência da fé na linguagem dos diversos grupos sociais, especialmente dos jovens.

Outubro é o mês missionário. Como está a ser vivido em Portugal?

Nós preparámos um Guião Missionário, que é um instrumento de reflexão, oração e compromisso missionário. Gostaríamos que chegasse às mãos do povo de Deus. Infelizmente, algumas Dioceses não respondem da maneira que gostaríamos; há dioceses que nem sequer pedem um guião por paróquia! E os cristãos, em geral, apreciam-no, porque podem fazer por ali a Via-sacra, rezar o terço missionário todos os dias, etc. Nalgumas aldeias, como na minha terra, as pessoas até compram para os amigos de outras aldeias.

Em geral, o mês missionário centra-se no peditório no Dia Mundial das Missões. Infelizmente, por vezes não é anunciado nem feito. O ideal seria que fosse precedido de alguma preparação, de uma vigília..., que nos ajudasse a pensar na missão universal da Igreja e a comprometer-nos aqui e agora. A missão ad intra só é efetiva na medida em que se abra à missão universal. O pregador da Casa Pontifícia, o cardeal Capuchinho, Raniero Cantalamessa, uma vez usou uma imagem que aplicou ao perdão de Deus, mas que se pode aplicar à missão: dizia ele que o rio Jordão nasce nos montes Golã, depois desce e, na sua passagem, cria o Lago da Galileia, com muito peixe, cheio de vida, e continua; depois, a mesma água chega ao Mar Morto e, como não tem saída, morre ali. Qualquer graça, do perdão ou da missão, quando sai, revigora-nos, renova-nos. Se não lhe damos saída, morre em nós. Algumas das nossas comunidades podem correr esse risco: receberam a graça da fé, mas definham porque não fazem o esforço de ir ao encontro e acabam por não apreciar o dom que receberam.

Qualquer graça, do perdão ou da missão, quando sai, revigora-nos, renova-nos. Se não lhe damos saída, morre em nós. Algumas das nossas comunidades podem correr esse risco: receberam a graça da fé, mas definham porque não fazem o esforço de ir ao encontro e acabam por não apreciar o dom que receberam.

Padre José António Rebelo, que ideias relevaria da Mensagem do Santo Padre para o Dia das Missões?

Tomaria a passagem bíblica em que reflete, e diria que a nossa experiência pessoal e comunitária pode assemelhar-se à dos discípulos de Emaús, de um certo desencanto perante a situação que vivemos. Precisamos de meditar nas Escrituras e descobrir que há um sentido para a nossa vida; deixar que, no contato com Jesus, renasça em nós a esperança. Depois de sentirmos o coração em efervescência, somos capazes de sair, de ir ao encontro e de fazer a proposta da fé. A Mensagem faz-nos ver que em muitos casos estamos a precisar deste encontro pessoal com Jesus, que nos faz “ver”, que nos renova, que nos envia.

Por último, uma pergunta mais pessoal: a sua vida tem sido marcada pela comunicação social, mas também pela obediência...

Trabalhei 24 anos nas revistas Combonianas em Portugal, nas Filipinas e na África do Sul. Foi um trabalho exigente que me enriqueceu. Nunca tinha pensado nesse serviço: entrei nele por obediência. Aliás, a vida missionária é uma vida de obediência: não vamos para um serviço ou um país porque o escolhemos, mas porque nos mandam. Ora a obediência custa-nos, mas faz-nos crescer. Faz-nos descobrir os planos de Deus para nós, e quando olhamos para trás percebemos como Ele esteve presente, mas as suas pegadas não são visíveis no fundo do mar, como diz o salmo. A destinação que mais me custou foi ir para as Filipinas, porque me tinha sido dito pelo Padre Geral que iria para a África do Sul e só ter sabido da mudança de destino por terceiros. Mas aprendi muito nas Filipinas, onde fiz bons amigos que me continuaram a ajudar depois de ter saído. de lá. Mesmo agora ainda lhes peço trabalho voluntário, que eles definem “trabalho para Jesus”.

Artigo publicado no Jornal Correio de Coimbra de 12 de outubro de 2023.


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