Arquidiocese de Braga -

23 dezembro 2021

diário breve de um marginal

Fotografia

Jorge Vilaça

Pe. Jorge Vilaça, CMAB

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Ninguém apareceu ao baby shower. Depois de um parto difícil, foi amamentado de três em três horas e teve cólicas. Bolçou. Viraram-no de barriga para baixo para aliviar a pressão do ventre. Lutou contra o sono. Mudaram-lhe as fraldas. Foi refugiado. Em algumas noites levou os pais à beira da loucura, privando-os do sono. Chorou por razões desconhecidas, sorriu com as músicas desafinadas dos pais, aprendeu a gatinhar. Caiu. As primeiras palavras foram “dadadada” e depois “bababa”. Tentaram desfraldá-lo, uma e outra vez, com uns acidentes pelo meio, até ao “finalmente”. Comeu papinhas de farinha. Fez febre por causa dos dentes. Babou-se e fez birras. Teve terrores noturnos. Estimava um pano preferido que o ajudava a adormecer. Começou a caminhar. Quis ser o centro das atenções e levou um raspanete por partir um prato. Esfolou os joelhos nas pedras. Andou à bulha com os amigos da rua e adotou um rafeiro. Queimou-se na panela quente, ignorando os avisos paternos. Não foi para o infantário mas, depois, frequentou a escola para aprender o Alef-Beit. Quis esquivar-se dos trabalhos de casa. Aprendeu a defender-se. Queria sempre ter razão e foi repreendido. Perdeu-se nas horas na brincadeira com os primos, contou piadas e dançou. Não faltou a uma festa. Trabalhou, adoeceu, comeu e gostou de escutar o bêbado da aldeia. Cortou o cabelo e as unhas, perdoou, foi à fonte buscar água e apanhou uns gravetos para o lume. Foi adolescente, uns dias mais obediente que outros. Tomava banho uma vez por semana. Vestiu-se com roupas de segunda mão e acompanhou uns fulanos, à época, suspeitos. Batizou-se já em idade adulta. Deixou-se levar por um impulso, à data inexplicável, e preferiu os que já tinham perdido tudo. Apaixonou-se e abraçou. Falou e rezou na Sinagoga, investigou as respostas de sempre e perguntou-se pelo sentido das coisas. Pôs em causa a autoridade dos pais, dos professores e as regras estabelecidas por homens de roupas finas. Falou de Amor pelas praças. Muitos o ouviram interessados sobretudo os que não entravam nas contas da produção. Outros acharam-no arrogante e desamigaram-no. Construiu amizades para a vida à volta da fogueira, do pão e do vinho, e deixou outras terminarem por incompatibilidade várias. Impôs-se, convicto, e muitos o temeram quando falou em dar a Vida. Não teve profissão nem casa certas e viveu do que caía das sobras dos outros. Não fez contas, nem poupanças. Silenciou quando lhe armadilharam o caminho com o diz-que-disse. Foi prisioneiro. Muitos se apaixonaram pela marginalidade que livremente escolhera. Retirou-se, sozinho, e muitos se admiraram por não se deitar na cama da fama. Caminhou muito, viajando como quem descobre o coração da casa paterna. Descobriu, contudo, por que viveu e para quem viveu.

Nunca celebrou a festa de aniversário. E isso também não interessou aos marginais que o seguiram durante quase 400 anos. Nunca soube o dia do seu nascimento, como não o sabem ainda hoje milhões de pessoas pelo mundo. “Vai acabar sozinho”, alguns deitaram-se a adivinhar. Quase terminou, de facto. Porém, até hoje, alguns marginais de coração ferido e curado, curado e ferido, ferido e curado, fazem memória da sua Vida na chamada páscoa semanal.

Artigo publicado no Suplemento Igreja Viva de 23 de dezembro de 2021.


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