Arquidiocese de Braga -

11 junho 2017

"Os pais converteram-se em sindicalistas dos filhos"

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Uma outra familiar professora, a tia Francisca García, nota que “há crianças que escutam pela primeira vez um ‘não’ quando chegam à escola; em casa, jamais lhes disseram tal palavra”. Marimar sublinha uma alteração de atitude dos pais: “Dantes, a norma er

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por Eduardo Jorge Madureira Lopes 
 

A educação encontrava-se omnipresente na edição de terça-feira do diário espanhol El Mundo. Omnipresente é a palavra certa. No topo de praticamente todas as 56 páginas do jornal, um ou uma estudante respondiam a questões diversas relacionadas com o tema. No fim das duas linhas atribuídas a cada inquirido, encontrava-se o hashtag #NãoAprendemos, que figurava também, destacado, no topo da primeira página. O ponto de vista não era, portanto, simpático. É que a educação, dizia o título do editorial, é “o grande fracasso” da democracia espanhola.

Embora nem tudo fosse negativo nas abundantes páginas com notícias, reportagens e análises que o jornal dedicou ao ensino e educação, o tom geral não era tranquilizador. Um texto dava conta da exaustão dos professores. Uma causa não despicienda encontrava-se registada no singular testemunho de uma família com três gerações de docentes, a avó, Loli García; a filha, Marimar Fernández; e a neta, Daniela Ruiz. As três lamentavam a intromissão dos pais na vida da escola, uma realidade que é também portuguesa. 

“Agora chegam recados dos pais dizendo como deves dar as aulas”, verifica Marimar. Daniela situa no início dos anos 90 o início desse género de procedimentos: “Por essa altura, os pais começaram a meter-se onde não eram chamados”. Os pais estão a tornar os filhos muito dependentes e inseguros, testemunha Marimar. Diz ela que, numa turma de 28 crianças, há, na melhor das hipóteses, cinco que têm uma disciplina e uma educação adequadas. “O resto não”. Uma outra familiar professora, a tia Francisca García, nota que “há crianças que escutam pela primeira vez um ‘não’ quando chegam à escola; em casa, jamais lhes disseram tal palavra”. Marimar sublinha uma alteração de atitude dos pais: “Dantes, a norma era escutar o professor. Agora, é escutar o filho”.

No mesmo jornal, no início de Janeiro, Massimo Recalcati, um conhecido psicanalista, ensaísta e professor italiano, pronunciava-se sobre uma tão significativa alteração de comportamento, explicando, numa entrevista assaz pertinente, que a escola, enquanto instituição, atravessa uma crise, em consequência de, em grande medida, os pais e os professores já não trabalharem juntos na educação dos mais novos. A citação que deu o título à entrevista identificava o fulcro do problema: “Os pais converteram-se em sindicalistas dos seus próprios filhos”. O que é novo na situação de hoje é a ruptura do pacto geracional, considera Massimo Recalcati. A cisão entre pais e professores, que já não cooperam na educação das crianças e dos jovens, configura uma mudança sem precedentes. Os pais passaram a ser os aliados dos filhos contra os professores. O vínculo espiritual entre pais e professores, reconhecido por Freud, encontra-se hoje desfeito, considera Massimo Recalcati. 

Instado a comentar a guerra dos pais espanhóis contra os “trabalhos para casa” dos filhos, o psicanalista afirmou que reivindicar a liberdade dos filhos significa negar a função educativa da escola. “É um vento anti-institucional que atravessa o nosso tempo”. Para o entrevistado, “desqualificar a escola é desqualificar a dimensão colectiva da vida”. Quando o filho se torna o rei da família e tudo se deve submeter às suas exigências, regista- se uma “metamorfose antropológica”, que faz com que já não seja o filho a ter de prestar contas à realidade, mas a ser a realidade que tem de se submeter aos caprichos do filho. O psicanalista detecta a existência de “uma profunda solidão do professor”. Agora, constata ele, já não são os alunos que esperam na fila para serem triturados pelo sistema, como na famosa canção The Wall, dos Pink Floyd. Quem é consumido pelo dispositivo escolástico, são os professores. Os bons professores, evidentemente, porque os maus sabem moldar-se ao que convier e, em certos casos, são eles próprios, também, os pais que mais se intrometem e mais infernizam a vida dos colegas.


Fonte: Diário do Minho, 11 de Junho de 2017, p. 2.



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