Arquidiocese de Braga -

19 novembro 2021

“Ninguém foge do amor”: prisões alternativas do Brasil oferecem um modelo de justiça restaurativa

Fotografia Camino NYC Productions

DACS com America

“É um grito de socorro. Quando nos sentimos rejeitados, clamamos por amor, do berço ao leito de morte… Em última análise, esse grito é uma busca por Deus”.

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Durante a Semana Santa de 2020, os casos de Covid-19 no Brasil atingiram quase 4 milhões de pessoas, com mais de 3% desses casos a resultarem em morte. Um número significativo de casos nessa altura veio do sistema prisional brasileiro, que acolhe cerca de 773.000 presidiários e onde quase 4% dos presidiários tinham sido infectados – mais do que o dobro da taxa de infecção da população em geral.

Nas prisões superlotadas do Brasil, é difícil manter as precauções de distanciamento social, e a violência e os motins internos são uma ameaça frequente. Depois de as portas terem sido fechadas para os visitantes e o feriado da Páscoa ter sido adiado no ano passado por causa da pandemia, os reclusos revoltaram-se em quatro prisões semiabertas de São Paulo, onde podem trabalhar fora durante o dia e voltar à noite. Mais de 400 presos escaparam.

Mas, nos centros de detenção da APAC do Brasil – Associação de Protecção e Assistência aos Condenados – esse tipo de reacção não aconteceu e a crise de Covid-19 foi contida. Denio Marx Menezes, director de relações internacionais da APAC, relata que apenas 15 do total de 40.000 reclusos da APAC – apenas 0,04% – foram infectados durante a pandemia; nenhum tentou escapar.

O que acontece numa prisão APAC que faz com que os reclusos tenham vontade de lá permanecer?

Menezes recordou um recluso que escapou de seis prisões antes de entrar na APAC e a quem foi perguntado por que não tentou mais escapar. “Do amor ninguém foge”, respondeu.

O melhor desempenho de segurança das prisões APAC é ainda mais incrível quando se considera que as instalações da APAC não usam guardas prisionais. De facto, as chaves da prisão são confiadas a prisioneiros escolhidos, permitindo-lhes entrar e sair nos horários programados. Além dessas práticas pouco ortodoxas, não há armas na prisão e os reclusos podem usar roupas civis.

Todas essas medidas reflectem os objectivos exclusivos do modelo APAC. Considerando o tratamento e os resultados da cultura prisional nos Estados Unidos, é fácil suspeitar que o objectivo da maioria das prisões é simplesmente punir os criminosos; os programas APAC esperam ajudá-los a recuperar.

“Tentamos ensiná-los como Deus nos ensina: com amor”, disse Menezes. As suas palavras reflectem a visão do fundador da APAC, Mario Ottoboni, que certa vez disse que os criminosos “não são pessoas perigosas. Eles são apenas pessoas que não são suficientemente amadas”.

“Nós ajudamo-los a reconhecer que escolheram cometer um crime e como isso prejudica a sociedade”, disse Menezes, “mas também lhes damos as ferramentas para fazerem as pazes e escolherem fazer o bem aos outros”.

O programa de detenção é baseado num modelo de justiça restaurativa, com o objectivo de ajudar os presos a reconciliarem-se com as pessoas que feriram. “Tudo isso é impossível sem conhecer a história de cada recluso individualmente”, disse Menezes. “Trabalhadores reclusos e voluntários [que compõem a equipa da APAC] dedicam o seu tempo a aprender a história de cada pessoa”.

A primeira prisão APAC foi fundada em 1972 por um grupo de católicos liderados por Ottoboni, da diocese local de São José de Campos. Receberam permissão para aplicar o que viria a ser o modelo da APAC a uma prisão já existente na cidade. Por fim, a organização original (“Amando o Próximo, Amarás a Cristo”) dividiu-se em duas entidades, um instituto religioso e um jurídico que acabou a emergir como APAC. A associação tem vínculos com a maior Fraternidade Brasileira de Assistência aos Condenados e com a Prison Fellowship International nos Estados Unidos.

Ottoboni supervisionou a APAC até à sua morte em 2018, após a qual Valdeci Antônio Ferreira foi escolhido para lhe suceder. “O crime é a experiência de rejeição levada ao extremo”, disse Valdeci Ferreira numa entrevista à Comunhão e Libertação. “É um grito de socorro. Quando nos sentimos rejeitados, clamamos por amor, do berço ao leito de morte… Em última análise, esse grito é uma busca por Deus”.

O método APAC está comprometido com os ideais da justiça restaurativa e da Doutrina Social da Igreja. Testemunha a afirmação do Papa Francisco de que a verdadeira mudança social só pode ser o resultado de uma “cultura do encontro”.

“Podemos pensar que [este método] é apenas uma ilusão, que o que realmente está a acontecee é que estão a encorajar a criminalidade”, disse Julian Carrón, presidente da Fraternidade de Comunhão e Libertação. “Em vez disso, é um exemplo daquilo que acontece quando há um encontro real. O nosso problema às vezes é pensarmos que praticamente qualquer outra solução, por mais violenta que seja, é mais eficaz do que o poder do amor”.

Os presos, ou recuperandi (pessoas que estão a recuperar dos seus actos criminosos), como são chamados, seguem um programa de 12 etapas e uma rotina diária rígida. Como afirma um dos mais conhecidos slogans da APAC: “Aqui entra o homem; o crime fica lá fora”.

Quer seja a limpar celas, cozinhar, fazer jardinagem, ter aulas, rezar ou praticar desporto, os reclusos estão sempre ocupados desde que acordam às 06h30 até ao “apagar das luzes” às 22h00. “Eles não têm permissão para não fazerem nada”, disse Menezes, “estão sempre a fazer alguma coisa”.

Menezes acredita que todas essas tarefas diárias ajudam a “resgatar a dignidade da pessoa” – especialmente a limpeza. “Este lugar está sempre imaculado... está tudo tão limpo”.

Manter um ambiente limpo e bonito é essencial para manter o senso de dignidade e humanidade dos reclusos, disse Menezes. Além de aprender uma habilidade ou ofício, trabalhar e estudar, os reclusos são obrigados a participar em grupos de aconselhamento e serviços religiosos.

“Não é fácil estar na APAC”, disse Menezes. “A programação do dia é exigente. Os presos precisam de aprender a aceitar a palavra «não».” Não podem fazer o que querem.

“Existem regras, mas eles sabem a diferença entre regras motivadas pelo amor e regras motivadas pelo poder. E eles sabem que não estão sozinhos. Caminhamos em conjunto com eles, então é mais fácil superar isto”. Embora algumas prisões no Brasil ofereçam aulas opcionais e programas de formação para o trabalho, os programas da APAC são obrigatórios e “fazem parte da proposta, do ethos” da cultura.

A presença de voluntários que escolhem livremente passar o tempo a acompanhar os reclusos é essencial para favorecer este ambiente de amor. Essa é parte da razão pela qual o aparecimento do coronavírus no Brasil durante o primeiro semestre de 2020 foi especialmente doloroso para os reclusos da APAC. Não puderam receber mais voluntários, nem visitas de familiares.

Ter que manter o distanciamento social exigia que modificassem a sua rotina diária. Mas, após uma generosa doação da União Europeia, a associação comprou materiais para permitir que os reclusos começassem a fazer máscaras.

“Os reclusos ficaram tristes” durante o início da pandemia, disse Menezes, “mas fazer as máscaras deixou-os entusiasmados. Era uma forma de ajudar a sociedade e oferecer algo de bom. Foi uma oportunidade para eles dizerem à sociedade: «Vejam, não somos apenas criminosos. Somos úteis para alguma coisa». É incrível como um gesto tão simples pode resgatar a dignidade da pessoa”, explicou.

O modelo APAC tem recebido nova atenção graças a um documentário intitulado “Unguarded”. A directora radicada em Nova Iorque, Simonetta D’Italia-Wiener, conheceu a APAC através de uma apresentação no Rimini Meeting, um intercâmbio cultural anual na cidade italiana, que “despertou o desejo de os conhecer”.

Rapidamente fez uma viagem até à prisão APAC em Itaúna, Brasil, com uma equipa de filmagem para começar a criar o documentário. Quando chegou, percebeu que estava “frente a algo grande”.

“Eu tinha que mostrar a este mundo o que estava a encontrar e chegar ao fundo dessa experiência”, afirmou.

Durante as filmagens no local, D'Italia-Wiener passou mais de uma semana a dormir numa cela da prisão na APAC Itaúna. “As celas estão imaculadas. Os recuperandi, que vivem aos quatro em beliches numa cela, têm que manter as suas celas limpas e arrumadas. Um comité de recuperandi passa todos os dias a verificar”, disse ela.

“Se não estiverem limpas, eles são convocados pelo comité. O recuperandi com a cela mais limpa ganha um prémio. As paredes são coloridas e muito bem pintadas. Tudo na prisão é baseado na beleza, limpeza e ordem”, adiantou.

Também ficou impressionada com o facto de a prisão não ter a presença de nenhum segurança armado. Era gerida exclusivamente por recuperandi e voluntários. “Quando eles desobedecem às regras, têm um grande quadro branco que explica as consequências para os diferentes níveis de desobediência”, disse D'Italia-Wiener. “Se o crime for grave o suficiente, terão que ir a um tribunal, onde o juiz decidirá se devem ser levados de volta para o sistema prisional normal. Ofensas menores resultarão em consequências como ter que ficar na cela por um dia inteiro, como um lembrete do que estão a perder”.

“Uma vez por mês”, acrescentou ela, “todos os recuperandi se trancam nas suas celas o dia inteiro em solidariedade com os que estão nas prisões regulares”.

“Unguarded” visitará as universidades dos EUA neste Outono, incluindo a Universidade de Notre Dame, a Loyola University Chicago, a Universidade da Flórida e a Universidade de Omaha. Será exibido na PBS no final do Inverno de 2022.

Existem mais de 100 prisões APAC no Brasil, e o programa já foi adoptado em 23 outros países. Muitos americanos que se sentem atraídos pelo método APAC perguntam-se se algum dia será possível implementá-lo nos Estados Unidos.

Após uma recente exibição de “Unguarded” num programa de trabalho de transição na Paróquia de Lafourche, Louisiana, um recluso disse aos média locais: “No nosso país, as prisões são um lugar onde se coloca alguém e se deita fora a chave. E convém-nos porque é um negócio. A APAC é outra coisa: inimaginável, mas possível. Porque se lá é possível, também é possível aqui”.

Lorenn Walker, J.D., director dos Amigos da Justiça Restaurativa do Hawai e professor associado da Universidade do Hawai em Mānoa, expressou algumas reservas sobre a aplicação do modelo APAC nos Estados Unidos. Walker só consegue citar alguns exemplos das prisões dos EUA que experimentaram uma abordagem ao encarceramento ao estilo APAC.

A Prison Fellowship, que apoia a APAC desde a sua fase inicial, “tentou implementar [o modelo] nas prisões americanas. Existem algumas prisões que apoiam a justiça restaurativa, mas apenas em secções das prisões”.

“Não acho que a lei americana atualmente permita que pessoas encarceradas administrem as suas prisões/cadeias como a APAC faz no Brasil”, disse ela. Isto pode acontecer porque, disse Walker, a cultura americana aplica “uma lente patológica ao considerar o comportamento humano. A crença é que o seu comportamento é uma parte inerente da sua «personalidade». Há uma forte crença na genética e na hereditariedade do comportamento”.

A maioria dos americanos, sugere, dificilmente consegue imaginar que “as pessoas na prisão possam gerir-se positivamente e que devam ter as chaves das prisões".

 

Artigo de Stephen G. Adubato, publicado em America, a 17 de Novembro de 2021.