Arquidiocese de Braga -

18 março 2022

A “Grande Demissão” e a espiritualidade do trabalho

Fotografia DR

DACS com America

Vale a pena revisitar a “Laborem Exercens”, a encíclica do Papa João Paulo II de 1981 sobre o trabalho humano.

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“(…) Nascem novas esperanças, como também motivos de temor e ameaças, ligados com esta dimensão fundamental da existência humana, pela qual é construída cada dia a vida do homem, da qual esta recebe a própria dignidade específica, mas na qual está contido, ao mesmo tempo, o parâmetro constante dos esforços humanos, do sofrimento, bem como dos danos e das injustiças que podem impregnar profundamente a vida social no interior de cada uma das nações e no plano internacional”.

Assim escreveu o Papa João Paulo II em “Laborem Exercens”, a sua encíclica de 1981 sobre o trabalho humano. Vale a pena revisitar a complexa relação da Humanidade com o trabalho à luz da chamada Grande Demissão de hoje. Desde a Primavera de 2021, milhões de americanos deixaram o trabalho e muitos podem não pretender rregressar.

No TikTok, os vídeos “Quit Tok” celebram as decisões de deixar o emprego. A hashtag de demissão mais popular da plataforma, #quitmyjob, recebeu mais de 223 milhões de visualizações até ao momento. Mais calmamente, o Bureau of Labor Statistics começou este ano com relatórios de que a taxa de demissão de Novembro de 2021 – “separações voluntárias iniciadas pelo funcionário” – nos Estados Unidos aumentou para 3%, representando 4,5 milhões de pessoas. Embora isso possa parecer uma percentagem pequena, ainda era historicamente alta. O burburinho em torno dessa tendência intensifica-se à medida que algumas investigações afirmam que muitas outras pessoas estão a contemplar demissões.

É prematuro prever o impacto permanente da Grande Demissão. Os motivos das demissões são muitos. Os pais – principalmente as mães – deixaram os empregos porque a Covid-19 fechou as escolas. Alguns trabalhadores demitiram-se com esgotamento relacionado com a pandemia e podem regressar após o tempo de folga os recuperar. Preocupações sobre contrair ou espalhar a Covid-19 afastaram outros, enquanto outros ainda se demitiram em resposta a exigências de vacinas ou mudanças nas regras do local de trabalho. Alguns deixaram sectores sobrecarregados como saúde, enquanto outros aceleraram os seus caminhos para a reforma.

Sem surpresa, algumas demissões geraram outras, pois os que ficaram para trás na força de trabalho viram as cargas de trabalho aumentarem e os calendários a tornarem-se insustentáveis. Para entender a Grande Demissão, os especialistas devem avaliar plenamente quem se demite, por que se demite, o que faz após a demissão e se este é apenas um fenómeno temporário que reflecte a incerteza do momento, ou uma tendência mais permanente.

Por causa dessas incógnitas, intuições mais profundas sobre o trabalho humano da Doutrina Social Católica podem contribuir mais para reflectir sobre a Grande Demissão (…) Isto é particularmente verdadeiro para a “Laborem Exercens”, com foco directo no trabalho humano. A encíclica propõe uma sóbria espiritualidade do trabalho e uma lente para ver tanto as “novas esperanças” como os “novos temores” que a Grande Demissão pode causar e reflectir.

Este ensinamento reflecte o paradoxo do trabalho humano como bênção e fardo. No trabalho de todos os tipos – não apenas no emprego remunerado – os trabalhadores participam no acto da criação e partilham “a actividade do Criador”. Esta nobre missão é confiada exclusivamente à humanidade.

O trabalho é também o meio para cumprir as obrigações sagradas de sustento próprio, da família e dos dependentes. Uma “família requer os meios de subsistência”. No amor, e muitas vezes no sacrifício, o trabalho sustenta aqueles que nos são confiados. Mais amplamente, através do trabalho em diversas formas e ambientes, os trabalhadores promovem o bem comum usando talento e energia para criar ou fornecer o que ajuda os outros a prosperar.

Inegavelmente, o trabalho também é um fardo. A Doutrina Social Católica proclama com força que a dignidade do trabalhador – feito à imagem de Deus – exige condições de trabalho que não sejam exploradoras, abusivas ou degradantes. Também reconhece que muitas formas de trabalho são inerentemente difíceis, exaustivas, perigosas e sacrificais.

Nesse cenário, a Grande Demissão reflecte tanto “novas esperanças” quanto “novos temores” à medida que as relações entre o trabalho e a pessoa humana são recalibradas, tanto no discurso público, como na tomada de decisão individual.

 

Usar tempo e talento apropriadamente

É uma nova esperança quando os trabalhadores reavaliam as alocações de seu tempo e talento. Reconsiderar o trabalho envolve uma corajosa auto-reflexão e uma revisão de prioridades. Se feito com cuidado e planeamento para um novo trabalho mais gratificante, uso mais frutífero do talento dado por Deus, triunfo sobre a inércia, maior tempo com os entes queridos, ou uma vida mais simples, desapegada das armadilhas do consumo, este é um sinal de esperança. Decisões sobre como o tempo e o talento são gastos estão entre as escolhas mais importantes que todos enfrentam.

Como explica a “Laborem Exercens”, “o homem deve trabalhar, tanto porque o Criador o ordenou, como por causa da sua própria humanidade”. Além disso, “o homem deve trabalhar em consideração pelos outros, especialmente pela sua própria família, mas também pela sociedade a que pertence…já que é o herdeiro de gerações de trabalho e, ao mesmo tempo, co-artífice do futuro daqueles que virão depois dele na sucessão da história”. Cada pessoa é obrigada a discernir a melhor forma de ser um “herdeiro” grato e um “co-artífice” generoso. Se a Grande Demissão suscita tal reflexão, pode trazer uma grande e renovada esperança.

No entanto, um novo medo pode ser encontrado no facto de que os comentários populares e as declarações comemorativas da Grande Demissão reflectem uma atitude – talvez não intencional – depreciativa em relação ao trabalho. (…) Como declara a “Laborem Exercens”, “o trabalho é uma dimensão fundamental da existência humana na terra”. O trabalho, pago e não pago, inclui o trabalho dos tipos físico, intelectual e criativo. Se a Grande Demissão promove uma visão de que o trabalho é um mal a ser tolerado com má vontade e evitado se possível, tanto o bem comum quanto o indivíduo sofrem.

A obrigação de se sustentar a si mesmo e à família não deve ser tratada com leviandade. Celebrações alegres podem ser um sinal de desrespeito para com aqueles que não se dão ao luxo da resignação. É essencial distinguir entre o bem de procurar melhores formas de cumprir as obrigações e o mal de abandonar essas obrigações.

 

O valor da exigência do trabalhador

Uma segunda nova esperança está na maneira como a Grande Demissão pode – por enquanto – melhorar o bem-estar dos trabalhadores nos degraus mais baixos da escala económica. A Doutrina Católica muitas vezes assume um paradigma em que a oferta de trabalhadores é mais abundante em relação à necessidade. Os trabalhadores – particularmente aqueles que não possuem credenciais educacionais, ligações ou formação especializada – estão em desvantagem quando a fácil substituição enfraquece o seu poder de negociar.

Neste momento, a exigência de trabalhadores em empregos de nível básico e de baixa remuneração é alta, porque a taxa de demissões recentes tem sido particularmente aguda nos sectores de hospedagem/alimentação e comércio. Em Novembro de 2021, as taxas de desistência para cada um foram de 6,4% e 4,4%, respectivamente. O resultado é que os salários dos que estão na base da escala salarial, com menos formações educacionais e mais jovens em idade estão a aumentar nas escalas mais altas. Este sinal de esperança oferece oportunidades para uma participação mais ampla na força de trabalho e condições mais competitivas, mesmo ao nível de entrada.

O que é que sobre isto pode produzir um novo medo? Um número significativo de trabalhadores em “primeira idade” – de 25 a 54 anos – ainda não está na força de trabalho. Estatísticas recentes mostram que um em cada oito homens nesta faixa não está empregado. Embora as mulheres estejam empregadas a uma taxa inferior à dos homens, a sua taxa de emprego manteve-se mais estável à medida que as taxas dos homens diminuíram.

Essa taxa decrescente de emprego na “idade principal” é preocupante. É crucial entender  assuas causas e como a maior disponibilidade de oportunidades pode mudar isto. Também é importante saber como os adultos nesta faixa podem ser melhor assistidos para encontrar maneiras de partilharem os seus talentos e energia para servir ao bem comum e cumprir os seus compromissos com aqueles que dependem deles.

 

Novo Respeito pelo Trabalho?

Uma terceira nova esperança que pode surgir da Grande Demissão é o aumento do respeito pelo trabalho desvalorizado. A “Laborem Exercens” observa que “o valor do trabalho humano não é principalmente o tipo de trabalho que está a ser feito, mas o facto de que quem o está a fazer é uma pessoa”. No entanto, muitas vezes há menos respeito por aqueles cujo trabalho é considerado menos prestigiado. A actual escassez de trabalhadores em áreas críticas exige uma maior valorização das suas contribuições. A tarefa da Igreja “é sempre chamar a atenção para a dignidade e os direitos daqueles que trabalham, condenar situações em que essa dignidade e esses direitos são violados”. Se a Grande Demissão chama a atenção para a dignidade dos trabalhadores muitas vezes esquecidos, é uma fonte de esperança.

Que novo medo pode surgir disto? Há quatro décadas, São João Paulo II pediu “planeamento racional e… as proporções corretas entre os diferentes tipos de emprego… de acordo com as capacidades dos indivíduos e para o bem comum de cada sociedade e de toda a humanidade”. Isto não aconteceu e, portanto, as necessidades críticas não são atendidas. O desalinhar entre os tipos de trabalhadores necessários e a oferta de trabalhadores formados ou incentivados a entrar nestes campos é impressionante.

Além disso, à medida que os debates se intensificam sobre o crescimento da dívida universitária, é oportuno perguntar se outros caminhos para vocações significativas são desvalorizados ou desencorajados. Mais uma vez, São João Paulo II foi presciente quando temeu que “[a] educação disponível não está orientada para os tipos de emprego ou serviço exigidos pelas verdadeiras necessidades da sociedade, ou quando há menos procura de trabalho que exige educação, ao menos educação profissional, do que para o trabalho manual, ou quando é menos bem pago”. É fundamental preparar e recompensar melhor aqueles que fazem o importante trabalho de sustentação da vida que agora é tão requisitado. Ignorar essa necessidade desperdiçaria uma esperança gerada pela Grande Demissão.

 

Como e quando o trabalho deveria ser realizado

Uma quarta nova esperança pode ser encontrada no modo como a Grande Demissão induz a uma saudável reconsideração da moderna organização do trabalho. Um modelo em que todos os adultos de uma família são empregados remunerados, em locais diferentes, em horários fixos de aproximadamente 40 horas semanais, não tem sido o paradigma ao longo da história. No passado e em outros lugares, o trabalho foi organizado de forma diferente por preferência, necessidade ou ambos.

Embora idealizar outros modelos seja arriscado, é benéfico reavaliar suposições sobre se a actual organização do trabalho atende bem aos trabalhadores e à comunidade. A “Laborem Exercens” previu que “novas condições e exigências exigirão irão requerer uma reordenação e um novo ajustamento das estruturas da economia hodierna, bem como da distribuição do trabalho.” A Grande Demissão pode anunciar a chegada dessas novas condições e exigências.

Um novo medo neste caso reside nas consequências não intencionais da rápida reorganização do trabalho. Inúmeras investigações indicam que muitos trabalhadores agora querem mais flexibilidade no horário e local das suas rotinas de trabalho. Muitos indicam que procurariam outro emprego dentro de um ano se não recebessem flexibilidade suficiente nessas duas questões. De certa forma, é saudável ver as preferências individualizadas dos trabalhadores no centro das atenções. No entanto, assim como é correcto criticar os empregadores que vêem os funcionários como parte de uma mera transacção contratual, também pode ser prejudicial se os funcionários adoptarem uma perspectiva semelhante.

Claro, isso não significa que novos modelos não devam ser seguidos quando for apropriado. Mas esse movimento pode aumentar as divisões entre as classes de trabalhadores de maneiras novas e dramáticas, porque os trabalhadores em tantos campos, como manufactura, assistência médica, creches, hospitalidade, saneamento, segurança pública, serviços de alimentação, agricultura e muitos outros campos não têm as mesmos opções. Também é importante, como muitos locais de trabalho mudam tão rapidamente, dedicar um especial cuidado para manter as comunidades no local de trabalho, garantindo que os jovens funcionários tenham mentores pessoais que realmente os conheçam e fomentem os laços sociais entre os trabalhadores. Estes podem sofrer se o sentido de propósito comum for perdido. Esta não é uma consequência inevitável, mas sustentar a humanidade intangível do local de trabalho pode ser facilmente negligenciado.

 

Apreciar a recriação

Uma quinta nova esperança acontece no modo como a Grande Demissão pode aumentar o apreço pelo descanso significativo. O “Burnout” é citado como um factor em muitas decisões de demissão. Isto deve estimular a apreciação renovada pelo descanso devidamente ordenado. A tradição católica tem valorizado consistentemente o direito ao descanso e, especificamente, “um descanso semanal regular compreendendo pelo menos o Domingo” para se dedicar ao culto de Deus, cuidar dos entes queridos e recreação. Numa sociedade que abandonou amplamente o descanso sabático, a Grande Demissão pode apontar novamente para a santidade do tempo de renovação.

Um novo medo que surge com essa nova apreciação pelo lazer é que o mundo moderno não entenda mais o descanso significativo. Um dia de descanso não é uma panaceia para aqueles esticados ao máximo para fazerem face às despesas. Nunca será. Mas as evidências sugerem que “descanso” e “lazer” são cada vez mais solitários e passivos. A última investigação americana de uso do tempo disponível do Bureau of Labor Statistics relata que, em 2020, os americanos gastaram, em média, mais de três horas por dia a verem televisão. Pessoas com idades entre 20 e 24 anos gastaram, em média, 1,4 horas a mais por dia a jogar jogos de computador. O descanso deve “recriar”, fortalecer os trabalhadores para o trabalho e promover laços amorosos de fé, família e amizade. A Grande Demissão, ao mesmo tempo em que induz a reconsideração do trabalho, deve também incitar a reconsideração do lazer sagrado.

 

Restaurar Comunidades

Uma sexta nova esperança está na possibilidade de que aqueles que se demitem, se aposentam ou reestruturam o trabalho possam ter mais tempo e energia para contribuir para as suas famílias e comunidades. Além do potencial para um descanso mais significativo, a Grande Demissão tem um potencial significativo para promover o bem comum se libertar os trabalhadores para se envolverem na comunidade, aumentar o voluntariado e o tempo com crianças, idosos e necessitados. O trabalho não remunerado em casas, construindo comunidades, sustentando a cultura e servindo os mais vulneráveis não tem preço e deve ser valorizado e celebrado.

Infelizmente, as informações sobre a actual alocação de tempo dos adultos não confirma essa esperança. O Time Use Survey relata que, em 2020, o tempo que os americanos passaram como voluntários foi de apenas 0,08 horas por dia, em média, e apenas 0,09 horas foram gastas diariamente em actividades religiosas. Cuidar e ajudar os membros do agregado familiar (excluindo crianças) ocupava uma média de 0,43 horas por dia. Cuidar de membros não familiares durou em média apenas 0,14 horas. Embora a Covid-19 tenha reduzido significativamente as oportunidades de voluntariado e a oportunidade de actividades religiosas comunitárias, esses números reflectem tendências anteriores à pandemia. Isto não é um bom presságio para as nossas comunidades, a menos que a Grande Demissão estimule novas formas de contribuir para o bem comum.

Com certo optimismo realista, São João Paulo II usou a “Laborem Exercens” para pedir “a descoberta dos novos significados do trabalho humano”. Com um abraço de novas esperanças e um compromisso para enfrentar novos medos, a Grande Demissão pode ser um chamamento para encontrar, na antiga ordem para trabalhar, algo novo e significativo.

Artigo de Lucia A. Silecchia, publicado em America a 16 de Março de 2022.