Arquidiocese de Braga -

19 setembro 2022

Cardeal Czerny convida os cristãos a unirem-se para reconstruirem um mundo despedaçado

Fotografia AFP

DACS com Vatican News

Prefeito do Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral concentra-se na mensagem contida na encíclica “Fratelli tutti” e cita outras encíclicas e doutrina da Igreja para exortar os cristãos a promoverem a solidariedade e a ética para ajud

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Numa palestra proferida no Sábado, dedicada ao apelo do Papa Francisco à fraternidade na sua encíclica “Fratelli tutti”, o cardeal Michael Czerny convidou todos os cristãos a abraçarem a amizade social e a fraternidade.

Falando num evento durante uma conferência intitulada “Vida, Solidariedade, Fraternidade: A Ética Consistente da Vida à Luz da Fratelli tutti”, o Prefeito do Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral disse que com a encíclica de 2020, o Papa Francisco ofereceu uma nova linguagem da amizade social que pede para se promover o desenvolvimento da vida humana.

A conferência foi patrocinada pelo Centro Bernardin da União Teológica Católica, que continua o ministério de reconciliação e pacificação do falecido Cardeal Joseph Bernardin, diálogo inter-religioso, desenvolvimento de liderança para a Igreja Católica, ética de vida consistente e a procura de um terreno comum entre a Igreja e o mundo através de vários eventos e programas.

Descrevendo o cardeal Bernardin como um líder visionário, o cardeal Czerny lembrou os seus ensinamentos que sustentavam a vida humana como “sagrada e social” e observou que temos o dever de protegê-la e promovê-la em todas as fases do desenvolvimento, o que implica a necessidade de criar “o tipo de ambiente social que protege e promove” a vida humana em todas as circunstâncias.

Citando o cardeal Blase Cupich, seu sucessor como arcebispo de Chicago, Czerny disse: “A Igreja está a pedir uma ética consistente de solidariedade que visa garantir que ninguém, desde o primeiro momento da vida até à morte natural, da comunidade mais rica até aos nossos bairros mais pobres, seja excluído da mesa da vida”.

O Prefeito aprofundou a doutrina católica que “ensina que promover o desenvolvimento da vida humana, significando em sentido pleno o florescimento da vida humana na história da salvação, deve ser uma missão multifacetada que protege e valoriza a sacralidade da vida, a sua solidariedade na qual somos todos irmãos filhos de Deus, e o seu cuidado cuidado com a nossa casa comum”.

Chamamos isto de “desenvolvimento humano integral”, disse, sugerindo a “Fratelli tutti” como texto principal de referência neste contexto.

Observando que ao longo das Escrituras e nos escritos dos Padres da Igreja, bem como nas encíclicas e exortações de hoje, “a doutrina moral e social da Igreja tem mantido e promovido consistentemente uma compreensão correcta da pessoa humana”, destacou que “somos criados por Deus, somos filhos de Deus”, e somos chamados a cuidar uns dos outros e viver juntos como irmãos e irmãs, “tornando conhecidos os valores do bem, do amor e da paz”.

“Tragicamente, injustamente e agindo contra a vida, o impulso da nossa época é contra o desenvolvimento humano integral”, afirmou.

 

Antropologia imperfeita

O Cardeal apontou o que edescreveu como “antropologia imperfeita” como algo que funciona “contra o nosso papel divinamente designado de cuidar de nossa casa comum. Contra a sacralidade da vida humana. Contra a solidariedade humana”.

Afirmou que há 130 anos a doutrina social católica tem tentado corrigir essa antropologia imperfeita, e listou uma série de encíclicas ao longo do século passado que condenam um “espírito individualista maligno” e que ressaltam o facto de que “enquanto a propriedade privada é legítima e válida, o direito a ela deve estar sempre subordinado ao destino universal dos bens, a noção de que os bens da terra são dados por Deus a todas as pessoas”.

O princípio do destino universal dos bens, continuou o cardeal Czerny, é um tema ao qual o Papa Francisco regressa na “Fratelli tutti”.

 

Efeitos da globalização nos laços humanos

E citando o Papa Emérito Bento XVI, lembrou a sua preocupação com os efeitos da globalização sobre os laços humanos: “À medida que a sociedade se torna cada vez mais globalizada, torna-nos vizinhos, mas não nos torna irmãos”.

Elencando uma série de efeitos do mercado global e novas formas de competição entre os Estados e depois a desregulamentação do mercado de trabalho e o decréscimo dos sistemas de segurança social, a erosão dos direitos dos trabalhadores e dos direitos humanos fundamentais, o Cardeal Czerny disse: “O ponto de partida é esta afirmação antropológica que cita a «Gaudium et Spes»: O ser humano é feito de tal maneira que não pode viver, desenvolver-se e realizar-se senão «no dom sincero de si aos outros»”.

Passou a explicar como “o dom de si” é o caminho para a plenitude, explicando que “ninguém pode experimentar a verdadeira beleza da vida sem se relacionar com os outros, sem ter rostos reais para amar. Isso faz parte do mistério da autêntica existência humana”.

“A vida existe onde há união, comunhão, fraternidade; e a vida é mais forte do que a morte quando é construída sobre relações verdadeiras e laços de fidelidade. De contrário, não há vida quando afirmamos ser autossuficientes e vivemos como ilhas: nessas atitudes, prevalece a morte”, afirmou.

Czerny explicou que “o desenvolvimento humano autêntico diz respeito ao todo da pessoa em todas as dimensões, incluindo a dimensão transcendente”, e que “a pessoa não pode ser sacrificada para alcançar um bem particular, seja ele económico ou social, individual ou colectivo”.

 

Globalização da indiferença

Rejeitando a afirmação neoliberal de que o mercado livre por si só pode promover o florescimento humano, o prefeito expressou a sua crença de que “para sustentar um estilo de vida que exclui os outros, ou para sustentar o entusiasmo por esse ideal egoísta, desenvolveu-se uma globalização da indiferença”.

“Quase sem nos darmos conta, acabamos por ser incapazes de sentir compaixão pelo clamor dos pobres, chorar a dor dos outros e sentir a necessidade de ajudá-los, como se tudo isto fosse responsabilidade de outra pessoa e não nossa”, observou.

Lembrando os ensinamentos do Papa Francisco na “Laudato sì”, também condenou uma cultura de relativismo e pediu uma ecologia integral, “a ideia de que como tratamos a natureza e os nossos semelhantes estão interligados”.

Esta é uma visão, disse, e uma postura excludente que vem de uma antropologia imperfeita: “uma antropologia desordenada do individualismo, que leva a uma distorção da ideia de liberdade”.

“O individualismo não nos torna mais livres, mais iguais, mais fraternos. A mera soma dos interesses individuais não é capaz de gerar um mundo melhor para toda a família humana”, indicou.

O Cardeal Czerny aprofundou então a doutrina da Igreja sobre economia que “denuncia consistente e repetidamente as economias de mercado quando os seus excessos resultam em negligenciar as necessidades e diminuir a vida de maiorias significativas, deixando-as vulneráveis, marginalizadas e empobrecidas”.

“Na ausência de verdades objectivas ou princípios sólidos além da satisfação dos nossos próprios desejos e necessidades imediatas, que limites podem ser colocados ao tráfico de pessoas, crime organizado, tráfico de drogas, comércio de diamantes de sangue e peles de espécies ameaçadas?”, questionou.

Também mostrou como a nossa economia global “promove os vírus do materialismo e do consumismo em todo o cenário mundial. Como as suas mãos invisíveis promovem inexoravelmente o que se vende sobre tudo o que não se vende, a economia global muitas vezes torna difícil até mesmo aos participantes bem-intencionados escolher o que pode ser melhor para o bem comum, melhor para os pobres entre nós, melhor para cuidar do meio ambiente, por  outras palavras, moralmente melhor”.

 

Doutrina Social Católica

O Cardeal Czerny pediu uma economia infundida com os princípios da doutrina social católica para se opor e superar a falsa antropologia do “homo economicus” que transformou o ser humano não “numa amada criação de Deus, mas simplesmente mais uma ferramenta ou recurso na economia de mercado”.

"O funcionamento da economia de mercado global”, adiantou, “tende cada vez mais a objectivar a pessoa humana, isolar a pessoa humana no individualismo frágil e temeroso e dar prioridade aos interesses próprios sobre o bem comum. Tudo isto está fundamentalmente em desacordo com a santidade e a dignidade da vida humana”, observou.

Apontando para um comportamento ético para amanhã, o Cardeal observou que para ser pró-vida, “certamente não é suficiente simplesmente opor-se ao aborto e à eutanásia. Nem é suficiente reconhecer e tolerar a dignidade da vida de todos, mesmo com uma tolerância especial para aqueles que, ao contrário de nós, são marginalizados ou pobres”.

“O genuinamente pró-vida também requer acompanhar, acolher e unir-se a outros como irmãos filhos de Deus – especialmente aqueles que, por causa da sua diferença, são mais difíceis de amar. Uma ética de vida consistente é também uma ética de solidariedade consistente”, afirmou.

 

O nosso mundo está em desacordo com a ética da solidariedade

Concluindo, disse que o mundo contemporâneo está em desacordo com a ética da solidariedade que é tão essencial na concepção cristã da pessoa humana.

“Se aceitarmos o grande princípio de que existem direitos nascidos da nossa inalienável dignidade humana, podemos enfrentar o desafio de vislumbrar uma nova humanidade. Podemos aspirar a um mundo que forneça terra, habitação e trabalho para todos. Este é o verdadeiro caminho da paz”, disse, citando a “Fratelli tutti”.

E, finalmente, recordando a parábola do Bom Samaritano tão amada pelo Papa Francisco, o Cardeal Czerny apelou a todos os cristãos para que nunca deixem ninguém passar pela vida como um pária: “Meus irmãos e irmãs, reconhecendo-nos uns aos outros como irmãos filhos de Deus que somos, vamos unir-nos em solidariedade e amizade social para reconstruirmos este mundo despedaçado, o nosso único lar, esta raça humana, a nossa família única sob Deus”.

Artigo do Vatican News, publicado a 18 de Setembro de 2022.